domingo, 2 de outubro de 2016

A composição ambivalente de "Os sete samurais", de Akira Kurosawa



Daniel Baz dos Santos


Tirando o óbvio do caminho, Os sete samurais, filme lançado em 1954, é uma obra-prima do cinema mundial. Trata-se, provavelmente, do melhor filme de seu realizador, o diretor japonês Akira Kurosawa, cuja carreira é marcada por projetos geniais como Rashomon, Madadayo, Ran, Viver, entre muitos outros. Conforme já apontou Donald Richie, a obra se segue à proposta de Mizoguchi em Contos da lua vaga, preocupada em desbravar momentos históricos do passado japonês, mas retratando os seres com dimensão psicológica contemporânea, abrindo caminho para outros grandes filmes posteriores, dos quais se destaca Harakiri, de Kobayashi.
Os sete samurais se passa no período histórico que ficou conhecido pelas “províncias em guerra” pelo poder (1490-1600). É o momento que antecede a era Edo (1603-1868), na qual o Japão gozou de um extenso momento de paz sob o reinado dos Tokugawa. Kurosawa filmaria quatro histórias passadas neste mesmo período. Trono manchado de sangue (1957), A fortaleza escondida (1958), Kagemusha, a sombra do samurai (1980) e Ran (1985). Além do caráter histórico, o filme apresentava um dos pontos culminantes da apropriação feita pelo diretor da cultura ocidental, ficando patente, mais uma vez, sua admiração pelo cinema norte-americano, com particular predileção pelo gênero Western. A mistura dará uma nova cara aos Jidai geki, filmes históricos japoneses, associados à tradição do Chambara, que, tanto no cinema quanto no Kabuki, ocupavam-se de enredos em torno de duelos de espadas.
O conflito de Os sete samurais se inicia quando os habitantes de uma pequena aldeia de agricultores se tornam reféns de um bando de 40 saqueadores. Para não acabar completamente com a produção local, o líder dos pilhadores decide poupar provisoriamente o lugarejo para poder aproveitar melhor a colheita da cevada em alguns meses. Após ouvir a conversa dos malfeitores, um grupo de moradores da localidade procura o sábio ancião do povoado em busca de conselhos e ouvem da velha figura um plano ousado: contratar samurais para proteger o lugar dos saques.


Sendo assim, a trama do filme aposta no complexo jogo entre classes e posições de poder, estabelecendo relações dinâmicas entre os muitos estratos da sociedade japonesa do período, tópico recorrentemente explorado pelas escolhas de Kurosawa. A começar pela cena que abre Os sete samurais. Coincidentemente ou não, temos sete rápidos cortes de câmera onde acompanhamos os bandidos enquanto se posicionam em um alto monte para observar, de cima, o vilarejo. Portanto, a primeira visão que temos da aldeia é mediada pela longa distância de um plano abertíssimo, responsável por nos colocar na perspectiva dos bandidos.
Por esta via, duas medidas humanas são postas em contraste, ou seja, a dos vilões, naturalizada pela câmera, e a dos camponeses, apequenada e longínqua. Nesse sentido, aquela “ambiência moral relativamente negativa” e “pessimista”, que Marcel Martin afirma ser a primeira dimensão psicológica deste tipo de enquadramento afastadíssimo, assume uma posição precisa sobre o cabo de forças entre os dois grupos e situa a impotência de uns como recorrência (e consequência) do domínio dos outros. Essa dualidade será representada por todo o filme em vários de seus níveis.


Os cortes posteriores se aproximam cada vez mais dos habitantes da aldeia e só aumentam a força do primeiro grande plano picado e a tensão mental que ele proporciona, ao colocar os assuntos daqueles que irão nos interessar no nível do chão. Dessa forma, age na narrativa visual um determinismo que tem como fundo a importância desse mesmo solo no papel desempenhado pelos contratantes ao longo do filme.
De fato, o jogo entre o real valor das coisas e a importância atribuída pela câmera a elas é usado também para demonstrar o peso da comida e de sua influência nas trocas entre os seres. Os aldeões estão famintos, comendo apenas painço para conseguir pagar os samurais com arroz. Por causa disso, em alguns momentos, o alimento surge agigantado, ganhando uma importância que percebemos artificialmente aumentada e fruto das contradições exploradas pelo enredo. É digna de nota a cena na qual vemos Kambei Shimada oferecendo uma tigela de arroz aos aldeões quando descobre que eles estão mal alimentados.  Se, num primeiro momento, somos enfeitiçados pela proporção aberrante da refeição, seguindo os parâmetros hermenêuticos vistos até aqui, uma segunda olhada demonstra algo muito mais complexo.


Trata-se da alteração que a comida promove na dimensão das figuras humanas, visto que a mão que a oferece é imensa, afirmativa e confiante, entrando em conflito com a imagem dos três camponeses minorados e acossados dentro do quadro. Estamos diante de um plano concebido de forma ambígua, pois é “detalhe” e “médio” ao mesmo tempo. Em outras palavras, na mesma medida em que ele ambienta, hierarquiza. Sua composição, ao tentar articular dois tamanhos distintos e ter em seu centro o precioso manjar, é uma das tantas formas iconográficas empregadas por Kurosawa para dar vazão ao sentido das relações entre os diversos nichos do filme. Além disso sua dualidade e o jogo entre as proporções dos itens em cena e rima com a cena inicial já analisada..
Provavelmente, as distintas naturezas dos personagens que se movimentam em tela e a proveniência particular de cada um deles, levou Kurosawa a repensar a maneira como vinha captando as imagens em seus filmes anteriores. Talvez por isso Os sete samurais seja o primeiro trabalho que Kurosawa tenha filmado com três câmeras. Decisão que será fundamental no projeto estético do diretor, posto que, gradualmente, desembocará em Céu e inferno (outra fábula sobre a relação entre os desvalidos e os abastados), no qual o cineasta usará nove câmeras para rodar uma única sequência: a incrível cena do trem.
Ainda relacionado ao imaginário da colheita e seus sememas visuais, o moinho surge em algumas passagens como representação efetiva do mundo cíclico do qual os aldeões estão ainda à mercê. Seu mecanismo ruidoso será a trilha sonora de uma das cenas iniciais do filme, quando os camponeses decidem o que irão fazer em relação aos saqueadores. É por isso que a região na qual ele se posiciona será a primeira a ser abandonada quando o combate se inicia, libertando os moradores da reiterativa vida de submissão na qual vinham inseridos (é sintomático também que este seja o espaço onde transita o ancião da aldeia).


Com efeito, a segunda parte do filme, após o intervalo, demonstra como esse ambiente, cuja funcionalidade está vinculada à produção agrária, será completamente alterado depois que os samurais traçam o plano de defesa. Casas serão evacuadas. Onde havia uma plantação será criado um charco. Famílias perdem sua disposição natural e organizam-se em esquadrões, seguram lanças e riem, de uma maneira impensável para quem acompanhou o início da obra. Toda a disposição inicial, e natural, do povoado é alterada. Esse esforço para lutar pela própria produção e as drásticas mudanças no cenário, que ocupam longos minutos da projeção, simbolizam a superação de uma fenda, cuja base é a desigualdade entre os despossuídos e os aprovisionados.
Toda a primeira parte do filme, que narra a procura dos guerreiros dispostos a lutar pelos aldeões, é coerente com isso. Basta notar como o líder dos samurais, o experiente Kambei Shimada, deve se disfarçar de monge para impedir um assassinato. Essa mudança de status também atinge Heihachi Hayashida, que é encontrado trabalhando como lenhador para um simpático senhor mais afortunado do que ele. Da mesma forma, o personagem de Isao Kimura, jovem samurai rico, decide lutar por meros punhados de arroz e, inclusive, dá aos aldeões o dinheiro que eles precisam para recuperar o produto após este ter sido roubado. Deleuze, que não abordou estas contradições, via nos samurais justamente estas sombras sem lugar social definido, sujeitos sem serventia que não parecem saber exatamente o que são e que, estando "fora de lugar", ajudam a representar o universo de territórios limite, desfocados e plurívocos do filme.


Assim como Kambei Shimada, as mulheres da aldeia também cortam o cabelo, mas para se fingirem de homens, visto que os agricultores temem violações por parte dos mercenários, o que revela um outro conflito, menos explorado pela obra, e que se processa no campo dos desequilíbrios de gênero. Outra cena que atua nesse mesmo complexo discursivo é aquela na qual a esposa de Rikishi, um dos contratantes, prefere morrer incendiada a voltar para o vilarejo. A dualidade do caráter da mulher (e da sequência como um todo) é brilhantemente exposta por Kurosawa já que ouvimos, ao mesmo tempo, o som das chamas consumindo o estabelecimento e o rumor do riacho utilizado para descobrir o esconderijo. Sendo assim, há no universo retratado por Kurosawa um número considerável de mudanças abruptas de status e de disfarces de toda sorte e é nesse contexto de simulações que o filme arranja seus personagens na comunidade. Essa, por sua vez, nunca é esquecida, já que diretor faz questão de focalizar as grandes massas em todos os pontos do filme, como que para não nos deixar esquecer do propósito geral de sua fábula.



 Somente dentro deste conjunto de forças, podemos interpretar apropriadamente uma das melhores cenas de Os sete samurais, atestado do talento de Toshiro Mifune e da precisão com que compõe seu simpático papel. O grande ator japonês vive seu personagem Kikuchiyo com um vigor impressionante. Sabemos ao longo do filme que ele anda com uma árvore genealógica falsa, assumindo o nome de um indivíduo que deveria ter treze anos de idade. Sua origem enigmática se soma à sua espontaneidade, já que o ator empresta traços animalescos à sua figura, o que a torna imprevisível.
Vemos Kikuchiyo por trás de grades, como um animal acuado. Ele rosna, cospe, mostra os dentes, atira areia com os pés quando se enerva. Em dado momento, chega a ser afugentado com pedras por um de seus companheiros. Tudo isso prepara a cena na qual o inconstante espadachim tenta convencer os outros seis guerreiros a usarem, no combate final, armas e armaduras encontradas na aldeia. Os demais, percebendo que os camponeses mataram samurais feridos ou perdidos para montarem o arsenal, se recusam a utilizar os acessórios, ofendendo os agricultores de assassinos. A resposta é o grande monólogo do personagem de Mifune, que assevera que a condição dos campônios foi criada pelos próprios samurais e, em último caso, pelo contexto da guerra e da divisão da sociedade em classes. Todos percebem neste ponto que o espadachim vivido por Mifune é, de fato, um filho de camponês, condenado a vagar depois de algum saque.


A cena é brilhante, no entanto, porque o ator desenvolve o longo solilóquio inteiramente vestido com a armadura de um samurai abatido. Esta é a coroação maior da mobilidade promovida pelo filme, e da necessidade de se assumir certos papéis para que o discurso ganhe força. Na contramão do Papa na peça Galileu Galilei, de Bertolt Brecht, que incorpora o discurso dominador, quando traja suas vestes eclesiásticas, assumindo a ideologia do opressor, o samurai pode finalmente entender o seu lugar no mundo. Pode-se dizer também que a indumentária comporta um excesso de visão sobre a personagem que necessita se disfarçar do “outro” para ampliar sua perspectiva a respeito da organização do mundo.
Além do espaço da aldeia, o filme também explora o entre-lugar em que o jovem Katsushiro Okamoto conhece a filha do aldeão por quem se apaixonará. Para representar o amor impossível, Kurosawa os situa em território descontextualizado, um dos grandes ambientes oníricos espalhados por seus filmes, que não remete nem à guerra, nem à colheita. Aqui se situa não somente o choque da cultura samurai com a camponesa, como também o primeiro contato entre os heróis e o bando inimigo. Nesse ambiente, devido à sua natureza híbrida e multifacetada, repleta de incongruências e contatos inesperados, os indivíduos têm de andar escondidos, frequentemente ocupados em atividades transgressivas, seja emboscando um oponente, seja esperando um amante.


Todo esse universo de valores opostos que colidem preestabelecem o sentido da luta final entre saqueadores, samurais e aldeões. Quando os bandidos finalmente atacassem a aldeia sob forte chuva, Kurosawa sabia que seria impossível antecipar exatamente o que aconteceria diante das câmeras. Além disso, a ação não poderia ser interrompida nem recomeçada, pois isso acarretaria num aumento considerável nos custos da produção. O diretor posiciona as suas três câmeras com precisão invejável e capta uma das maiores cenas de ação da história do cinema. Provavelmente por razões também técnicas, temos pouquíssimos closes ou planos mais fechados no momento do ataque e isso causa um efeito poderoso na tela. A partir dos enquadramentos mais distantes, nunca perdemos de vista o cenário no qual os guerreiros transitam. Todos os golpes, investidas, disparos de flecha estão indissociavelmente ligados ao espaço onde eles são executados e fluem com naturalidade de uma parte do terreno para outra, principalmente nas várias tomadas em que acompanhamos os cavaleiros entrando na aldeia, sendo emboscados e tentando sair do outro lado.
Esse vai e vem incessante, que marca toda a sequência, é o movimento preciso encontrado pelo diretor para revelar os conflitos sociais explorados pelo filme em seu clímax. As panorâmicas horizontais são, mais uma vez, ambíguas, ou seja, funcionam para acompanhamento e ambientação. Os movimentos laterais obsessivos, raramente antepostos a outros verticais, apontam para uma maior adequação da atividade da câmera às propriedades signícas do cenário, como notou G. Buttafava a respeito do cinema novo dos anos 60, o que marca mais um pioneirismo de Kurosawa.


São, portanto, simultaneamente descritivos e dramáticos, adquirindo uma função coreográfica que não é meramente técnica, mas também estabelecendo um caminho para o sentimento profundo das tensões em jogo. Além disso, o uso da panorâmica torna-se ainda mais dual, pois, ao alterar completamente os itens iniciais sendo expostos pelo quadro, movendo-se lateralmente, a câmera substitui parte do trabalho da edição, montando relações entre dois lugares do espaço, tanto sensoriais quanto intelectuais, sem utilizar cortes entre eles (o que desconjuntaria a natureza coletiva e geograficamente precisa do drama).
Nesse sentido, esses ritmos reiterativos, quase circulares, em que a câmera e os personagens avançam e recuam, conotam, de forma complementar, a dimensão daquilo que é evanescente e provisório, visto que, não fossem as cenas anteriores em que vemos um mapa da aldeia, perderíamos toda referência espacial e a imediata função simbólica dupla de uma câmera exasperada, cheia de fôlego e ávida por não perder as formas e os volumes diante de si. Essa conturbação, obviamente, está a serviço também do duelo entre duas visões de mundo, que são plasmadas pelas mudanças repentinas de trajetória que cadenciam a batalha. Toda a “progressão” de nosso ponto de vista, aponta para a impossibilidade de conjugar o fora e o dentro, o aqui e o lá, o ataque e a defesa.



Para entender o domínio preciso da posição de câmera nos filmes de Kurosawa basta lembramos da cena na qual um dos aldeões surpreende a filha com Katsushiro Okamoto. A câmera narra os acontecimentos do ponto de vista de fora da casa, assumindo assim a perspectiva da fuga da protagonista, tomando, obviamente, seu partido, ao mesmo tempo em que critica a brutalidade do pai. São esses mesmos dispositivos narrativos em que a câmera não apenas registra, mas propõe o mundo, que fazem de Kurosawa um gênio da sétima arte. Além disso, se a história do cinema é a história da libertação da câmera, como disse Alexandre Astruc, Os sete samurais deve ser posto ao lado de Cabíria, Intolerância e outros bastiões desse percurso.
A última imagem do filme mostra os túmulos inertes dos samurais. Depois do festival de movimentos e música executado durante o renhido combate, parece que o resultado é a paralisia total, reflexiva por um lado e contemplativa por outro. Contudo, alguns aldeões atravessam o campo em alta velocidade, síntese dialética entre movimento e estase, ação e impotência. A cena é ambivalente e complexa como a maneira pela qual Kurosawa via o mundo e revelava, em uma das mais poderosas histórias do século XX, as contradições de uma sociedade vítima de opressão.







quinta-feira, 28 de julho de 2016

Uma homenagem a Abbas




Em janeiro, um dos diretores de que eu mais gostava, o italiano Ettore Scola, faleceu. Agora, em julho, outro cineasta de minha predileção se foi, o iraniano Abbas Kiarostami. 2016 não está sendo fácil. Tinha aqui comigo este pequeno texto, inédito, que escrevi depois de assistir a O vento nos levará no cinema, há alguns anos. Penso que este é o momento adequado de dar publicidade a ele.
Mauro Nicola Póvoas

Lá pelas tantas, em O vento nos levará (Bad ma ra khahad bord, 1999, direção de Abbas Kiarostami), o personagem que vem de fora, aquele que é civilizado, que possui telefone celular e carro, reclama da ociosidade que sente, já que a missão para a qual está destinado – filmar um ritual típico da vila de Siah Dareh, que se desencadeia quando alguém morre – fica impossibilitada de se concretizar, já que a vítima não quer perecer. Na verdade, o Engenheiro (único personagem não-nomeado no filme; todos os outros são chamados pelos seus nomes “reais”, o que ajuda a borrar as fronteiras entre ficção e documentário) sente-se deslocado naquele local, em que todos têm as suas tarefas rigidamente marcadas, e parecem destinadas a cumpri-las ad infinitum: há aquele que abre o buraco e aquela que extrai o leite da vaca; há a que faz o pão e o que estuda para os infindos exames; há aquela que engravida e dá à luz em ritmo quase industrial; há o que trabalha com o ensino e o que mexe com a terra.



Não por acaso, são todas tarefas ligadas à vida ou àquilo que carrega consigo símbolos essenciais, como a terra, a natureza e o alimento, ou ainda àquilo que supostamente permite o vislumbre de um futuro melhor, por meio da educação: ou seja, signos positivos. O personagem principal, por sua vez, vem marcado negativamente, pela ranzinzice e maldade que sutilmente (aliás, no filme, tudo é sutil) marca suas atitudes, como quando vira a tartaruga com o casco para baixo ou no momento em que é grosseiro com o menino que serve de cicerone pelos caminhos da vila iraniana. No início, para o mesmo menino, o homem parece já tentar justificar seu comportamento que aflorará posteriormente, exemplificando que, como as máquinas, os homens podem “pifar” a qualquer momento, o que sempre traz injustiça e incompreensão.



O deslocamento de lugar, forçado ou não, no entanto, sempre acarreta transformações no indivíduo. Aqui, a viagem faz com que o Engenheiro passe a enxergar a vida pelo viés da... vida, e não pelo da morte, pois o que o trio de personagens – embora dois deles nunca apareçam – vai buscar na longínqua localidade, senão um ritual de morte? O release de divulgação já aponta: “A vida insiste em vencer neste filme que ganhou o Prêmio do Júri do festival de Veneza/99”: a vida está lá, explodindo em todos os cantos, mostrada aos espectadores parcimoniosamente pela câmera – as cenas dos cachorros brincando e correndo; a velha que, motivo da ida dos “estrangeiros” à vila, teima em não morrer, contra todas as previsões; o homem que, cavando um buraco, milagrosamente não morre depois de um soterramento; a presença do médico, que resume a esperança.



Aos poucos, esses sinais de vida vão se entranhando no homem que, a princípio, concentra a sua atenção apenas em atender ao telefone celular que toca incessantemente, cena-chave que se repete quatro ou cinco vezes ao longo do filme. Opera-se, desta maneira, uma metamorfose, com a presença de elementos vitais justapondo-se ao impulso da morte que move o filme em seu início. Assim, o personagem principal encontrará uma espécie de redenção, seja quando avisa a tempo aos colegas do cavador de buracos do soterramento, seja quando pede ao médico que visite a velha que está prestes a morrer.
Os passeios na garupa do médico, aliás, complementam esse percurso da mudança. O Engenheiro transmuda-se, do motorista da caminhonete que se desloca de cima para baixo sem notar a paisagem à volta, em passageiro: assim postado, em posição secundária, pode melhor observar a região. A beleza da natureza do lugar é já referida no início do filme e não é à toa que o cartaz da película traz como imagem-símbolo os dois personagens na moto, em sintonia com a imensidão da paisagem.



Em suma, o Engenheiro transforma-se, do "abutre" que fica à espreita da morte para poder satisfazer o mundo "civilizado"  ansiosamente à espera para poder se deliciar com os rituais extravagantes e plásticos da população interiorana –, em observador que delicadamente passa a interferir na vida dos nativos: as várias caronas, a indicação ao médico da velha, a preocupação com o bebê vizinho que chora, a "cola" ao menino.
 A ociosidade, aquela referida inicialmente, parece estar ligada à negatividade, à morte, mas, na verdade, é só o nome dado pelo Engenheiro a uma falta de percepção de como se dá a rotina no lugar, em que tudo é mais lento, mais calmo; as coisas, porém, estão ocorrendo à sua volta, e ao natural ele começa a se integrar na comunidade e a ajudá-la.




O vento nos levará mostra que uma vida aparentemente sem destino e sem sentido, conduzida de forma errônea, pode recriar-se a partir de situações e tramas que surgem e se constroem, numa constante redescoberta de novas trilhas e caminhos. Resumindo, é um filme sobre a expectativa de mudança que todos trazem consigo, algo, enfim, próprio aos seres humanos.


sábado, 5 de março de 2016

O monstro de cada um em Boa noite, mamãe




Daniel Baz dos Santos

Boa noite, mamãe, de Veronika Franz e Severin Fala, é um filme austríaco independente que, de forma desconcertante, atualiza uma série de temas caros ao seu gênero: o terror psicológico. Seguindo prática do Mauro Póvoas, o trabalho poderia ser definido como uma mistura de Os inocentes, de Jack Clayton, Babadook, de Jennifer Kent, e Violência gratuita, de Michael Haneke. Em uma casa isolada em região campesina, uma mulher retorna ao convívio dos filhos, depois de ter passado por uma cirurgia plástica no rosto. Logo, os gêmeos Elias e Lukas começam a suspeitar do caráter agressivo e desconfiado da mãe, o que leva ambos a se perguntarem se esta é realmente a sua verdadeira progenitora. Sendo assim, o primeiro item de interesse da trama é o rosto coberto da convalescente, pálida referência aos monstros clássicos de terror que agem com o rosto escondido (Jason) ou deformado (Fred Krueger), além de traçar um intertexto com Olhos sem rosto, de Georges Franjue um dos seus temas centrais: a reconstrução de um ente querido após trágico acidente. Assim como no filme de 1960, a identidade  da mulher é provisória e indefinida, sendo este o primeiro vetor dos conflitos que se desenvolvem. 



José Gil, no livro Monstros, explica como que a monstruosidade é uma forma de distorcer os sentidos da corporalidade, dando novos valores e atributos a ela. O monstruoso, por essa via, se relaciona diretamente com os valores do corpo humano, pois contém uma “Infra-língua”, ou seja, transgride o estatuto mundano do corporal em prol de uma nova linguagem, uma nova retórica que propõe o equilíbrio entre o familiar e o aberrante na integridade corpórea de determinado sujeito. Situa-se, assim, como a desfiguração máxima do “mesmo” em “Outro”. A pergunta a respeito da consistência do ego se dá de dentro para fora e é assim que o filme consegue, ao menos no início, que nos identifiquemos com a visão dos meninos. A cena na qual um deles vê o olho da mãe superdimensionado pelo espelho é a demonstração mais bem acabada do sentido não racional do corpo, de sua potência quase sobrenatural, desligada da realidade mundana. Neste ponto, a mãe é uma espécie de Minotauro ou Esfinge, ser sobrenatural que guarda uma fronteira desconhecida, um centro inexplorável. É sintomático que, logo no início do filme, ao brincar do popular jogo no qual o participante deve adivinhar o personagem escrito em uma folha grudada em sua testa, a mãe não consiga descobrir que é ela mesma quem os meninos colocaram no papel. É também neste sistema de identificações e questionamentos da natureza de cada um, que podem ser interpretadas as muitas cenas nas quais a mulher surge diante de espelhos.





À indefinição da mãe se somam os quadros que adornam a casa com figuras difusas, imprecisas. Sombras que, no fundo da cena, rimam com a ambiguidade das ações que são empreendidas. Outro item do cenário que reforça este ambiente dúbio é a presença opressiva das persianas. Em geral, elas compõem o quadro com listras horizontais que estabelecem um jogo de claro e escuro presentes no gênero, no mínimo, desde seus exemplares expressionistas. Em certa cena, na falta de persianas, uma escada apresenta esta mesma definição, mostrando o cuidado dos realizadores com o efeito preciso. As janelas servem para contrabalancear também o visto com o não visto, o que intensifica o mistério e - em duas cenas particulares, quando as crianças cerram as persianas enquanto olham para fora da casa – ajudam a aumentar nossa sensação de angústia.






 Enquanto os conflitos entre os familiares se manifestam, os diretores mostram a rotina das crianças, que brincam nos arredores da casa, geralmente de forma agressiva, com socos e encontrões, o que conota um potencial que se confirmará depois, ou se ocupam de tarefas específicas, visitando cavernas, colecionando baratas e cuidando de gatos perdidos. Os meninos também usam máscaras, estratégia que sinaliza para a obscuridade de suas personalidades. No começo, Elias e Lukas se vestem de maneira praticamente idêntica, com exceção da cor da camiseta. Conforme a crise entre eles e a mãe se adensa, ambos passam a se vestir do mesmo jeito e executam, como se fossem uma unidade conflituosa, o castigo que a impostora em sua casa parece merecer. Contrariando os clichês do gênero, toda a sequência mais violenta do filme é feita em um espaço extremamente claro, com janelas abertas por onde entra muita luz. A cama onde a mãe repousa em boa parte do início do filme, torna-se espaço de tortura e punição. Mais uma vez, a obra se relaciona com uma das máximas do gênero, explorando o desejo voyeurístico do espectador, que participa, deseja ver, mas não sabe qual ponto de vista está fadado a assumir (o da mãe presa, ou o das crianças desconfiadas). Talvez por isso, em cena especialmente forte, a câmera corte para uma das paredes da casa, repletos de memorabilia e objetos decorativos (ao fundo, o grito de dor da mãe), como a dizer que a violência se sobrepõe e contamina até mesmo os elementos inicialmente tidos por nós como inofensivos.





Em nível estrutural, o filme retoma o molde clássico do gênero, ou seja, um espaço de ordem (neste caso limitado basicamente à casa), que se transforma em cenário de caos e, normalmente, volta a ser ordenado ao fim. Participam deste território apenas os três protagonistas com uma intrusão notável: os funcionários da cruz vermelha, que batem na casa em busca de doações e recebem volumosa quantia das crianças. A cena serve como um comentário ácido a respeito da sociedade e sua lógica pragmática e desinteressada (note-se quão entediante a dupla é tanto no seu visual quanto no conteúdo dos seus diálogos). É por causa da ineficiência da comunidade em lidar, em nível prático e conceitual, com seus distúrbios que o universo onde se situam os conflitos deve ao fim sucumbir.



Impossível, como forma de dar uma última palavra sobre Boa noite, mamãe não mencionar a dinâmica entre a mãe e os dois meninos, estabelecidas dentro da ideia de“romance familiar”, como desenvolvida por Freud, já que, na fase anterior da puberdade, os gêmeos brincam, devaneiam e se distanciam da figura materna, como se ocupados com as muitas formas de “retificar o real”, visto que já o consideram transtornado. Ambos se perdem na fantasia máxima da mãe substituída por outra melhor, inatingível em todos os aspectos.
Toda a sequência de extrema violência no qual imobilizam a mãe na cama é, portanto, uma forma de retaliação e vingança - ainda essencialmente assexuada, é importante que se diga – e é interessante que ocorra em momento após o divórcio da protagonista, o que desequilibraria as projeções do filho em relação ao pai. Isso explicaria também o desejo de sufocar a voz da mãe e libertá-la em momento oportuno. Além disso, é inevitável que o sentimento de perda dos filhos se associe à ausência da figura paterna. A narrativa da mãe falsa parece ser uma forma encontrada pela criança de associar essa perda à falta da autoridade masculina, o que pode justificar a explosão de violência dos meninos. Esta seria, em outras palavras, uma tentativa de lidar com o desamparo diante da experiência da família fraturada. Dentro desse universo de transgressão diante dos referenciais tidos como "normais", destaca-se a subversão dos papeis familiares convencionais já que, aqui, são os filhos quem acompanham os atos da mãe, utilizando uma babá eletrônica.



A última imagem do filme é propositalmente inverossímil. A família reunida é o contraponto fantasmático do desejo não realizado de Elias. Até porque, ironia maior, a mãe verdadeira é, de fato, a figura concreta, aquela que eles se encarregam de destruir. De todas as monstruosidades exploradas, a criatura criada e distorcida por nossos desejos é, ao fim, aquela que mais amedronta e que rege o nosso destino e daqueles que nos cercam.



domingo, 21 de fevereiro de 2016

Uma homenagem a Ettore

No janeiro passado, o diretor italiano Ettore Scola morreu aos 84 anos. Em sua homenagem, o blog Cinema em Prosa publica uma pequena crítica que escrevi já há alguns anos, mais exatamente em 2003, depois de assistir a Um dia muito especial em uma das salas da Casa de Cultura Mario Quintana, um dos locais responsáveis por minha educação cinematográfica.



Mauro Nicola Póvoas

Uma frase do personagem de Marcello Mastroianni, Gabriele, logo após consumada a relação sexual com Antonietta (Sophia Loren), parece resumir o espírito melancólico de Um dia muito especial (1977), obra-prima (são poucos os filmes que podem receber este título), de Ettore Scola: “Foi muito bonito, mas não resolve nada”. A história que os dois viveram naquele dia tão especial talvez fique vincada neles para sempre, mas aparentemente não resolverá os problemas que os afligiam. Fica, ainda, a impressão de que nunca mais eles se vejam, sensação plasmada com bastante nitidez no desconsolo de Antonietta, apagando, uma a uma, as luzes da casa, o que metaforiza com exatidão a sensação de fim inexorável de algo – e a amargura do coração dela repassa imediatamente para o espectador. Não à toa, quando apaga-se a luz do abajur e imediatamente começam a correr os créditos finais, me perguntei se as 20, 25 pessoas que estavam na sala de exibição comigo (na Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre) sentiam com a mesma intensidade do que eu a emoção que o filme tinha conseguido transmitir – para minha surpresa e satisfação, um homem atrás de mim comentou com outro, ao seu lado: “Este filme deveria ser aplaudido de pé”. Nada como a recepção coletiva do cinema, para confirmar (ou não) suspeitas e incertezas.




Num nível metatextual, a frase de Gabriele pode, ainda, ser uma referência ao próprio filme: lindo, maravilhoso, mas que afinal não serve para nada, pragmaticamente falando. Aliás, como qualquer outra obra artística, no mundo prático aqui fora, a beleza denunciatória da arte parece não sensibilizar aos homens, que continuam a matar, a oprimir, a ter a tendência de aplainar as opiniões, tal como o Nazismo a partir da década de 30, exatamente a época retratado pelo filme.
Neste sentido, pode-se dizer que o perfeito trânsito de Scola entre o drama universal e o drama particular marca a película. De início, temos uma sequência de alguns minutos em que a ênfase recai sobre um documentário, em preto e branco, que retrata, em tom ufanista, a visita de Hitler a Roma, recepcionado por Mussolini. Somente após isso a câmera foca o prédio que será a locação que não mais abandonará.




Apenas um aparelho de rádio incessantemente ligado trará notícias para aquele labirinto de apartamentos habitados, naquele instante, somente por Grabrielle, Antonietta e a velha zeladora. Aos poucos, após uma vista geral, a câmera concentra-se numa vida, a da mulher que, casada com um homem bruto e mãe de seis filhos, vive quase que somente para atendê-los, servi-los, arrumá-los, cozinhar para eles. Tomamos conhecimento da primeira opressão retratada no filme: a da mulher, completamente amassada pelas tarefas de casa, sem direito a prazer algum, seja o da leitura (quantas vezes ela nega Os três mosqueteiros, sob a alegação de que não tem tempo para aquilo, ressaltando a solidão como fator indispensável do ato de leitura – aliás, chama a atenção de Antonietta o grande número de livros que o solitário Gabriele possui), seja o de ir ver Hitler (no contexto, isso é uma diversão, tanto que praticamente todas as pessoas vão ao programa), seja o sexual, já que um homem homossexual deu-lhe o que, há muito tempo ela não sentia com o homem heterossexual que tinha em casa, numa visão desconstrutora e ao mesmo tempo irônica do componente machista da sociedade italiana, por que não dizer de todas as sociedades do mundo.



Quando o pássaro (ou Antonietta, na metáfora evidente) escapa da gaiola, não é à toa que ele pousa na janela de um outro oprimido: do outro lado da janela, mais perto do que Antonietta pudesse imaginar, está um homossexual, que não aceita os ditames da sociedade, sendo assim acusado de comunista, depravado, antifascista. Desempregado, sentindo que os tempos que se avizinham para pessoas como ele não serão fáceis, Gabriele está prestes a se suicidar, quando é interrompido pela campainha. Como a pressão da sociedade patriarcal não aceita a liberdade das mulheres nem daqueles que não se encaixam naquilo considerado como a “normalidade” sexual, há logo a imediata empatia entre os dois excluídos.



Se por um lado Scola fala-nos do desmoronamento da instituição familiar e da falta de condições de se pensar e agir livremente, o diretor italiano não pensa somente no drama de um ou outro indivíduo perdido num condomínio romano, mas retrata também a opressão que se debruçava sobre toda a sociedade italiana da época. Claro que o plano que mais interessa a Scola, num primeiro momento, é o particular, mas a ditadura mais geral do Nazi-Fascismo permeia todo o filme, na cena inicial já aludida; no fato de todos terem ido à recepção do Führer; nas bandeiras estendidas nas sacadas; no rádio, que onipresentemente não para de transmitir todos os fatos acontecidos; na velha zeladora, que representa todo o conservadorismo da sociedade no microcosmos que ali se estabelece; no interesse que Antonietta mostra por Mussolini, plasmado no caderno de fotos do ditador italiano.



Ao fim, agora que ela já conheceu uma outra experiência, e essa experiência foi tão boa, o que lhe interessa cozinhar para a família (só fez sopa para a janta, fato do qual o marido reclama) ou então as notícias que sairão nos jornais amanhã? O álbum de Mussolini não importa mais agora – na verdade, pode-se perguntar se a ela foi dada a opção de gostar ou não do Duce.
A chegada da família, pai e seis filhos, a casa marca uma fina ironia, que joga com dois tempos da obra, o da fábula, na década de 1930, e o da realização, na década de 1970. Ao dizer, em 1938, que “Os americanos não entendem nada de armas, mas sim de filmes, quem entende de armas somos nós, os italianos”, o pai está sendo sério, sério como nunca foi, porém os espectadores de 1977 (ou de 2003, ou de qualquer ano) não podem conter um riso irônico, sabendo que depois da 2ª Guerra Mundial, da bomba atômica de Nagasaki e Hiroshima, do napalm no Vietnã, das intervenções na América Latina e no Oriente Médio, os americanos demonstraram que entendem bastante de armas. Por outro lado, uma cinematografia que enveredava cada vez mais por filmes como Tubarão (1975) e Guerra nas Estrelas (1977), em contraposição a um país que tinha diretores como Fellini, De Sica, Rossellini, Antonioni, Visconti, Pasolini, Scola e uma escola de cinema, a neorrealista, forjada na depressão econômica imposta pelas armas aliadas, leva à pergunta: quem sabe fazer cinema, de verdade?




O dia foi especial duplamente, tanto para Antonietta, como para o marido, Emanuele, que mal sabe que foi traído pela esposa, a qual imagina ser alguém que está sob seu completo domínio. Para Emanuele, o dia foi muito bom devido à comprovação da superioridade do homem, do branco, do heterossexual, e a tudo isso ele quer comemorar com a típica atividade impositiva masculina, a penetração: “Vou para a cama; estou te esperando, Antonietta, e se tivermos o sétimo filho, se chamará Adolf”; para a mulher, fazer sexo com o esposo, naquele dia, seria uma profanação, tanto que ela de imediato diz: “Não, hoje não”. Sua epifania precisa ser fruída solitariamente, na leitura e na observação discreta da ida do vizinho para longe, e na sensação de que sim, foi bonito, mas parece que pouco servirá, já que nada do que foi sentido por ela pode ser externado (o marido, por seu turno, não cansa de repetir, na sua superioridade masculina, “Que dia especial!”), pelo menos aos seus pares da diegese. Já nós, os emocionados espectadores, eternos voyeurs, temos vontade de dizer para ela que sim, sabemos de tudo, a apoiamos, a compreendemos, tanto que saímos do cinema confusos, amargurados, desesperançados: sim, a arte serve para muita coisa, em especial para nos tirar do prumo e nos fazer pensar sempre mais.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Nicholas Ray e o delírio da sociedade norte-americana



Daniel Baz dos Santos

Nicholas Ray já era, em 1956, um dos grandes diretores do cinema norte-americano, após ter desenvolvido obras como Johnny Guitar (1954) e Juventude transviada (1955), filme que inventaria um dos maiores ícones pop desta época, o personagem Jim Stark, vivido por James Dean. No entanto, nesse mesmo ano, ele lançaria mais uma obra impressionante, infelizmente hoje pouco celebrada e com um título medonho em português, Delírio de loucura (Bigger than life – no original). A história começa com o dilema de Ed Avery (James Mason na sua melhor forma), professor esgotado após arranjar um segundo emprego em uma radiotaxi para tentar melhorar as condições financeiras de sua família, a esposa (Barbara Rush) e o filho (Christopher Olsen). A abertura do filme investe, no melhor estilo de montagem dialética, no lugar desconfortável ocupado pelo protagonista. Temos um rápido movimento em close que se aproxima da porta da escola, seguido de um impetuoso bando de crianças que deixam o espaço com a energia costumeira desse tipo de grupo para, no corte seguinte, vermos Ed com um visível incômodo no pescoço.






A dinâmica estabelecida pela edição sinaliza para o conflito entre os jovens educandos e o educador, que será explorado posteriormente pelo filme e, obedecendo a coerência da cronologia da trama, por esta crítica também. A seguir, quando vemos o protagonista no seu segundo trabalho, percebemos mais uma vez seu caráter deslocado, já que é o único homem em um ambiente ocupado apenas por mulheres que coordenam as rotas dos taxistas. Essa emasculação, tópico comum em outros filmes de Ray (basta lembrar do pai de Jim, em Juventude transviada, vestido com o avental da mãe, enquanto limpa a casa), será recontextualizada no momento em que Ed chega em sua casa e pede que o filho deixe de assistir a um movimentado faroeste exibido na TV. “Não te aborrece ver isso?” “É sempre a mesma história”, diz o homem com decisão. Uma das intenções claras do diálogo é explicitar que Ed não é o típico herói hollyodiano, o “self made man” que resolve tudo com as próprias mãos, tipo ideal no gênero que ele aqui critica. O plano americano que o acompanha quando entra na sala, e que serviu de base para retratar ícones como John Wayne portando seu potente revólver, é agora um espúrio olhar para o homem cansado e sua maleta de professor, segurada entre as mãos com muita insegurança.




No entanto, a cena também se insere dentro da cinegrafia de Ray que, dois anos antes, já repensara as fórmulas do Western em Johnny Guitar, filme que, na época, desagradou aos fãs de John Ford e Howard Hawks, mas foi adorado por cineastas importantes como François Truffaut. Nele, a figura masculina central era problematizada, passiva diante dos eventos retratados e tendo que dividir o primeiro plano com a poderosa figura feminina da personagem de Joan Crawford. Esse intertexto não só favorece a desconstrução do herói ideal, como também ajuda a entender certas ironias na concepção do filme, como o fato de termos um pôster do Bryce Canyon National Park na parede, remetendo ao espaço onde os míticos pistoleiros transitavam e que serve de contraponto ao modesto lar do professor.



O transtorno visível do protagonista, inicialmente de origem monetária, se manifesta na sua compulsão por desligar todas as luzes da casa. Se no nível das ações a atitude é meramente econômica, em termos simbólicos ela representa o paulatino mergulho do protagonista no mundo das coisas obscuras e o incessante apagamento da realidade circundante diante da crescente autoridade da figura patriarcal (e seu desequilíbrio já manifesto). A casa suburbana, por seu turno, é concebida como contraponto sarcástico ao ideal da geração pós-guerra, criticando a ilusão do “American way of life”. Suas paredes estão repletas de cartazes que mostram territórios estrangeiros como Bolonha, Roma e França, servindo como símbolos do desejo de evasão que irá tomar conta dos três personagens em momentos distintos do filme.



Nesse sentido, o preciso uso da profundidade de campo é fundamental para que percebamos todo tipo de detalhe espacial ao longo das sequências. Além disso, ela permite que, em muitos momentos, vejamos vários cômodos da casa ao mesmo tempo, servindo como uma forma visual de fragmentar o espaço, assim como de desorientar nosso olhar, aproximando-nos do desequilíbrio de Ed. Este frequentemente é situado nas fronteiras entre uma peça e outra da casa, diante das portas e passagens. Isso, se por um lado, realça sua autoridade, já que qualquer movimentação no interior do recinto deve passar por sua figura, também fortalece sua natureza deslocada, ambígua, e enfatiza seu caráter transitório.







Acontece que Ed sofre de uma rara doença terminal que está lhe causando intensas dores. Num de seus primeiros surtos, o homem desmaia na porta de casa, despencando, ironicamente, sobre um abajur cuja luz se mantém acesa. A cena serve para demonstrar os males que sua obsessão já começa a provocar e este cuidado metafórico com as lâmpadas será mantido até o fim do filme. Após a queda, os transtornos do protagonista começam a se tornar cada vez mais instáveis. É nesse sentido que acompanhamos a bateria de exames do herói. Nicholas Ray, em chave surreal, resume o quadro a um único tom de cor avermelhado (signo de seu afundamento na insanidade) e nos mostra um raio-x de Ed engolindo, como se tivéssemos que estar dispostos a mergulhar em seu interior daqui em diante. Para se curar, o professor deve tomar uma droga experimental, a cortisona, que tem como efeito colateral alterar o estado mental do paciente.





Depois do tratamento, vemos Ed voltar à escola, feliz em estar vivo, ainda que tenha que tomar os remédios de seis em seis horas. O diretor não perde tempo em indicar visualmente a sua transformação psicológica. Primeiro, utilizando o recurso do quadro dentro do quadro, emoldurando a figura do professor pela janela do carro que sua cônjuge dirige. Sendo assim, há pelo menos um nível diegético a mais aqui, o que nos afasta do “novo” Ed. Quando finalmente sua esposa vai embora, a câmera o agiganta,sugerindo o delírio de grandeza que ele logo passará a vivenciar. Em seguida, tem-se uma das cenas mais brilhantes do filme, quando o, antes econômico, personagem decide comprar vestidos para a esposa.




Nessa sequência, a profundidade de campo, ampla mais uma vez, é fundamental para que nossa atenção erre pelos inúmeros itens do espaço. Espelhos emprestam um grau desarmônico, refletindo algumas figuras em ângulos oblíquos, ao lado do intenso contraste de cores e da natureza sinistra de certos objetos, com ênfase na sinistra mão vermelha que dá um ar irreal á composição do estabelecimento (não à toa, de cor vermelha). Mais do que isso, o reflexo precisamente posicionado multiplica as figuras, conferindo ainda mais substância ao devaneio de grandeza protagonizado pelo professor. Na verdade, essa exorbitância do cenário é eficaz na sua relação com a atitude esbanjadora de Ed e as imagens de Lou experimentando o vestido se relacionam, mais uma vez de forma dialética, com um único close no cheque assinado pelo protagonista, como se a imensidão do seu desejo (quase fetichista) não coubesse na sua realidade financeira. Essa felicidade repentina seguida da alienação do mundo real envolverá um paulatino desinteresse pelo trabalho. Ed quer apenas ficar em casa jogando futebol americano com seu filho, o que o leva a quebrar objetos da moradia em uma das senas. Esse vandalismo com o espaço familiar (que, assim como o desestímulo em trabalhar, será central em filmes como O iluminado, obviamente inspirado nesse projeto de Ray) também só será realçado pelas ações futuras das personagens.





Nesse sentido, se intensifica o jogo de câmera entre os cômodos da casa. As personagens não mais habitam as mesmas peças e, quando o fazem, se agridem verbalmente ou fisicamente. O clichê do lunático que se vê no espelho quebrado é revigorado por sabermos que é justamente atrás dele que Ed guarda as pílulas que o levam a loucura. Aqui ele já usa o roupão vermelho que marca sua passagem para o território desconhecido da desdita, visto que ao início do filme ele adota cores mais sóbrias, com exceção da pequena gravata rubra. A essa altura, o tresloucado professor prepara um novo plano para a educação. Julga que as crianças são seres doentes que devem ser curadas pelo ensino que, segundo ele, está cada vez mais permissivo. Com essa ideia em mente, resolve abandonar a mulher e filho para se dedicar a um livro sobre a reformulação do modelo educacional.



Em certa cena, finge-se de médico (de fato, pensa ser um, ao constatar que professor e doutor são palavras de mesma origem) e a imagem de uma caixa registradora que toma parte de sua figura, nos relembra do problema inicial do filme (econômico) e revela o domínio de seu realizador sobre os elementos visuais dispostos em cena. Os conflitos em casa só se adensam, como na cena em que vemos Ed discutir com o leiteiro e, principalmente, quando decide disciplinar o filho, obrigando-o a resolve cálculos matemáticos dificílimos. De forma expressionista, sua sombra na parede tem um peso e tamanho assustadores, lembrando talvez um macaco, um dos termos usados por Ed para descrever os jovens ignorantes.




As escadas, que a todo o momento foram importantes, ajudam a redefinir a posição dos personagens que se situam em níveis diferentes, além de servir como representação dos altos e baixos psíquicos de Ed. Toda esta sequência final está repleta de ironias. Começando pelo instinto disciplinador e repressor do homem que segura uma Bíblia na mão e diz que Deus está errado. Além disso, o único beijo entre o casal é uma paródia do ósculo romântico, precisamente situado em momento de intenso conflito e usado pela mulher para tentar ganhar algum tempo. Ed, decidido a matar o filho, inspirado em Abraão, liga a TV para que as pessoas não ouçam os gritos da esposa e o aparelho, que antes exibia o faroeste, agora toca uma animada música de parque de diversões. Quando Wally Gibbs, amigo da família, finalmente chega para detê-lo, o combate entre os dois destrói parte da casa (inclusive a escada, o que mais uma vez sugere sua carga simbólica), já que a luta se alastra por vários cômodos do ambiente. O objetivo é implícito: narrar a destruição do típico lar americano e a tragédia da família suburbana padrão. Contudo, é somente na derradeira sequência que o diretor Nicholas Ray desenvolve toda a amplitude semântica de seu projeto.




Ed é hospitalizado e observamos sua mulher e filho sentados, enquanto aguardam para vê-lo. É nesse momento que o menino se espanta ao reparar em um funcionário limpando o chão, pois não sabia que havia pessoas que trabalhassem naquela hora do dia. Sendo assim, a educação e maturação do jovem envolve a percepção da realidade econômica da sociedade, o que o insere no dilema de seu pai no início do filme. A criança finalmente começa a entender como funciona o sistema econômico que obriga as pessoas a uma jornada sacrificante e que só pode ter consequências traumáticas naqueles inseridos nele. Além disso, o jovem continua de vermelho, cor majoritária nas crianças que saem do colégio na cena inicial e que aqui se relaciona também com a luz no lado de fora do quarto de Ed. As aproximações cromáticas sugerem que o jovem começa a transitar no território que enlouqueceu seu pai.




 Nesse sentido, somente depois da conscientização do menino é que o filme pode se encerrar, evocando um dos seus principais componentes imagéticos: as lâmpadas. Primeiro, dentro do quarto, com as luzes que cegam Ed uma última vez e, acesas, marcam visualmente a sua passagem para a lucidez, uma vez que ao voltar a “ver” como um homem normal, ele se arrepende de tudo o que fez. Seriam essas luzes as mesmas que assustam o jovem Platão nos instantes derradeiros de Juventude transviada? Por fim, observamos a luz vermelha da emergência do hospital se apagando, como um último suspiro daquele drama familiar. A imagem do pai, mãe e filho reunidos que encerra o filme (sob uma luz apagada, entretanto) era necessária para um tempo em que o código Hays jamais permitiria um final sombrio, que relatasse a história crua de um núcleo familiar se deteriorando. No entanto, a harmonia final é situada no leito do hospital, no espaço de convalescença provisória, como uma forma de contestar o sonho da geração dos baby boomers e a ilusão econômica e social que ela representou e ainda representa.