Daniel Baz dos
Santos
Nicholas Ray já era, em 1956, um dos
grandes diretores do cinema norte-americano, após ter desenvolvido obras como Johnny Guitar (1954) e Juventude transviada (1955), filme que
inventaria um dos maiores ícones pop
desta época, o personagem Jim Stark, vivido por James Dean. No entanto, nesse
mesmo ano, ele lançaria mais uma obra impressionante, infelizmente hoje pouco
celebrada e com um título medonho em português, Delírio de loucura (Bigger
than life – no original). A história começa com o dilema de Ed Avery (James
Mason na sua melhor forma), professor esgotado após arranjar um segundo emprego
em uma radiotaxi para tentar melhorar as condições financeiras de sua família, a
esposa (Barbara Rush) e o filho (Christopher Olsen). A abertura do filme
investe, no melhor estilo de montagem dialética, no lugar desconfortável
ocupado pelo protagonista. Temos um rápido movimento em close que se aproxima
da porta da escola, seguido de um impetuoso bando de crianças que deixam o
espaço com a energia costumeira desse tipo de grupo para, no corte seguinte, vermos
Ed com um visível incômodo no pescoço.
A dinâmica estabelecida pela edição sinaliza
para o conflito entre os jovens educandos e o educador, que será explorado posteriormente
pelo filme e, obedecendo a coerência da cronologia da trama, por esta crítica
também. A seguir, quando vemos o protagonista no seu segundo trabalho,
percebemos mais uma vez seu caráter deslocado, já que é o único homem em um
ambiente ocupado apenas por mulheres que coordenam as rotas dos taxistas. Essa
emasculação, tópico comum em outros filmes de Ray (basta lembrar do pai de Jim, em Juventude transviada, vestido com o avental da mãe, enquanto limpa a casa), será recontextualizada no
momento em que Ed chega em sua casa e pede que o filho deixe de assistir a um
movimentado faroeste exibido na TV. “Não te aborrece ver isso?” “É sempre a
mesma história”, diz o homem com decisão. Uma das intenções claras do diálogo é
explicitar que Ed não é o típico herói hollyodiano, o “self made man” que resolve tudo com as próprias mãos, tipo
ideal no gênero que ele aqui critica. O plano americano que o acompanha quando entra
na sala, e que serviu de base para retratar ícones como John Wayne portando seu
potente revólver, é agora um espúrio olhar para o homem cansado e sua maleta de
professor, segurada entre as mãos com muita insegurança.
No entanto, a cena também se insere dentro
da cinegrafia de Ray que, dois anos antes, já repensara as fórmulas do Western em Johnny Guitar, filme que, na época, desagradou aos fãs de John Ford
e Howard Hawks, mas foi adorado por cineastas importantes como François
Truffaut. Nele, a figura masculina central era problematizada, passiva diante dos
eventos retratados e tendo que dividir o primeiro plano com a poderosa figura
feminina da personagem de Joan Crawford. Esse intertexto não só favorece a
desconstrução do herói ideal, como também ajuda a entender certas ironias na
concepção do filme, como o fato de termos um pôster do Bryce Canyon National Park na parede, remetendo ao espaço onde os míticos pistoleiros transitavam e que serve de contraponto ao
modesto lar do professor.
O transtorno visível do protagonista,
inicialmente de origem monetária, se manifesta na sua compulsão por desligar
todas as luzes da casa. Se no nível das ações a atitude é meramente econômica,
em termos simbólicos ela representa o paulatino mergulho do protagonista no
mundo das coisas obscuras e o incessante apagamento da realidade circundante
diante da crescente autoridade da figura patriarcal (e seu desequilíbrio já
manifesto). A casa suburbana, por seu turno, é concebida como contraponto
sarcástico ao ideal da geração pós-guerra, criticando a ilusão do “American way
of life”. Suas paredes estão repletas de cartazes que mostram territórios estrangeiros
como Bolonha, Roma e França, servindo como símbolos do desejo de evasão que irá
tomar conta dos três personagens em momentos distintos do filme.
Nesse sentido, o preciso uso da
profundidade de campo é fundamental para que percebamos todo tipo de
detalhe espacial ao longo das sequências. Além disso, ela permite que, em
muitos momentos, vejamos vários cômodos da casa ao mesmo tempo, servindo como
uma forma visual de fragmentar o espaço, assim como de desorientar nosso olhar,
aproximando-nos do desequilíbrio de Ed. Este frequentemente é situado nas
fronteiras entre uma peça e outra da casa, diante das portas e passagens. Isso,
se por um lado, realça sua autoridade, já que qualquer movimentação no interior
do recinto deve passar por sua figura, também fortalece sua natureza deslocada,
ambígua, e enfatiza seu caráter transitório.
Acontece que Ed sofre de uma rara
doença terminal que está lhe causando intensas dores. Num de seus primeiros
surtos, o homem desmaia na porta de casa, despencando, ironicamente, sobre um
abajur cuja luz se mantém acesa. A cena serve para demonstrar os males que sua
obsessão já começa a provocar e este cuidado metafórico com as lâmpadas será
mantido até o fim do filme. Após a queda, os transtornos do protagonista começam
a se tornar cada vez mais instáveis. É nesse sentido que acompanhamos a bateria
de exames do herói. Nicholas Ray, em chave surreal, resume o quadro a um único
tom de cor avermelhado (signo de seu afundamento na insanidade) e nos mostra um raio-x de Ed engolindo, como se tivéssemos que estar
dispostos a mergulhar em seu interior daqui em diante. Para se curar, o
professor deve tomar uma droga experimental, a cortisona, que tem como efeito
colateral alterar o estado mental do paciente.
Depois do tratamento, vemos Ed voltar à
escola, feliz em estar vivo, ainda que tenha que tomar os remédios de seis em
seis horas. O diretor não perde tempo em indicar visualmente a sua
transformação psicológica. Primeiro, utilizando o recurso do quadro dentro do
quadro, emoldurando a figura do professor pela janela do carro que sua cônjuge dirige. Sendo assim, há pelo menos um nível diegético a mais aqui, o que nos
afasta do “novo” Ed. Quando finalmente sua esposa vai embora, a câmera o
agiganta,sugerindo o delírio de grandeza que ele logo passará a vivenciar. Em
seguida, tem-se uma das cenas mais brilhantes do filme, quando o, antes
econômico, personagem decide comprar vestidos para a esposa.
Nessa sequência, a profundidade de campo,
ampla mais uma vez, é fundamental para que nossa atenção erre pelos inúmeros
itens do espaço. Espelhos emprestam um grau desarmônico, refletindo algumas
figuras em ângulos oblíquos, ao lado do intenso contraste de cores e da
natureza sinistra de certos objetos, com ênfase na sinistra mão vermelha que dá
um ar irreal á composição do estabelecimento (não à toa, de cor vermelha). Mais do que isso, o reflexo precisamente posicionado multiplica as figuras, conferindo ainda mais substância ao devaneio de grandeza protagonizado pelo professor. Na verdade, essa
exorbitância do cenário é eficaz na sua relação com a atitude esbanjadora de Ed
e as imagens de Lou experimentando o vestido se relacionam, mais uma vez de forma
dialética, com um único close no cheque assinado pelo protagonista, como se a imensidão do seu desejo (quase fetichista) não coubesse na sua realidade financeira. Essa felicidade repentina seguida da alienação do mundo real envolverá um paulatino desinteresse pelo trabalho. Ed
quer apenas ficar em casa jogando futebol americano com seu filho, o que o leva
a quebrar objetos da moradia em uma das senas. Esse vandalismo com o espaço
familiar (que, assim como o desestímulo em trabalhar, será central em filmes
como O iluminado, obviamente inspirado
nesse projeto de Ray) também só será realçado pelas ações futuras das
personagens.
Nesse sentido, se intensifica o jogo de
câmera entre os cômodos da casa. As personagens não mais habitam as mesmas peças
e, quando o fazem, se agridem verbalmente ou fisicamente. O clichê do lunático
que se vê no espelho quebrado é revigorado por sabermos que é justamente atrás
dele que Ed guarda as pílulas que o levam a loucura. Aqui ele já usa o roupão
vermelho que marca sua passagem para o território desconhecido da desdita, visto que ao
início do filme ele adota cores mais sóbrias, com exceção da pequena gravata rubra. A essa altura, o tresloucado
professor prepara um novo plano para a educação. Julga que as crianças são
seres doentes que devem ser curadas pelo ensino que, segundo ele, está cada vez
mais permissivo. Com essa ideia em mente, resolve abandonar a mulher e filho para se dedicar a um livro sobre a reformulação do modelo educacional.
Em certa cena, finge-se de médico (de fato,
pensa ser um, ao constatar que professor e doutor são palavras de mesma origem)
e a imagem de uma caixa registradora que toma parte de sua figura, nos relembra
do problema inicial do filme (econômico) e revela o domínio de seu realizador sobre os
elementos visuais dispostos em cena. Os conflitos em casa só se adensam, como
na cena em que vemos Ed discutir com o leiteiro e, principalmente, quando
decide disciplinar o filho, obrigando-o a resolve cálculos matemáticos
dificílimos. De forma expressionista, sua sombra na parede tem um peso e
tamanho assustadores, lembrando talvez um macaco, um dos termos usados por Ed
para descrever os jovens ignorantes.
As escadas, que a todo o momento foram
importantes, ajudam a redefinir a posição dos personagens que se situam em
níveis diferentes, além de servir como representação dos altos e baixos psíquicos
de Ed. Toda esta sequência final está repleta de ironias. Começando pelo
instinto disciplinador e repressor do homem que segura uma Bíblia na mão e diz que Deus está errado. Além
disso, o único beijo entre o casal é uma paródia do ósculo romântico,
precisamente situado em momento de intenso conflito e usado pela mulher para
tentar ganhar algum tempo. Ed, decidido a matar o filho, inspirado em Abraão,
liga a TV para que as pessoas não ouçam os gritos da esposa e o aparelho, que
antes exibia o faroeste, agora toca uma animada música de parque de diversões.
Quando Wally Gibbs, amigo da família, finalmente chega para detê-lo, o combate
entre os dois destrói parte da casa (inclusive a escada, o que mais uma vez
sugere sua carga simbólica), já que a luta se alastra por vários cômodos do
ambiente. O objetivo é implícito: narrar a destruição do típico lar americano e
a tragédia da família suburbana padrão. Contudo, é somente na derradeira
sequência que o diretor Nicholas Ray desenvolve toda a amplitude semântica de
seu projeto.
Ed é hospitalizado e observamos sua mulher
e filho sentados, enquanto aguardam para vê-lo. É nesse momento que o menino se
espanta ao reparar em um funcionário limpando o chão, pois não sabia que havia pessoas
que trabalhassem naquela hora do dia. Sendo assim, a educação e maturação do
jovem envolve a percepção da realidade econômica da sociedade, o que o insere
no dilema de seu pai no início do filme. A criança finalmente começa a entender
como funciona o sistema econômico que obriga as pessoas a uma jornada sacrificante e que só
pode ter consequências traumáticas naqueles inseridos nele. Além disso, o jovem continua de vermelho, cor majoritária nas crianças que saem do colégio na
cena inicial e que aqui se relaciona também com a luz no lado de fora do quarto de Ed. As aproximações cromáticas sugerem que o jovem começa a transitar no território que enlouqueceu seu pai.
Nesse sentido, somente depois da conscientização do menino é que o filme pode se encerrar,
evocando um dos seus principais componentes imagéticos: as lâmpadas. Primeiro,
dentro do quarto, com as luzes que cegam Ed uma última vez e, acesas, marcam
visualmente a sua passagem para a lucidez, uma vez que ao voltar a “ver” como
um homem normal, ele se arrepende de tudo o que fez. Seriam essas luzes as mesmas que assustam o jovem Platão nos instantes derradeiros de Juventude transviada? Por fim, observamos a luz
vermelha da emergência do hospital se apagando, como um último suspiro daquele
drama familiar. A imagem do pai, mãe e filho reunidos que encerra o filme (sob uma luz apagada, entretanto) era
necessária para um tempo em que o código Hays jamais permitiria um final
sombrio, que relatasse a história crua de um núcleo familiar se deteriorando.
No entanto, a harmonia final é situada no leito do hospital, no espaço de convalescença provisória, como uma forma de contestar o sonho da geração dos baby boomers
e a ilusão econômica e social que ela representou e ainda representa.
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