sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Nicholas Ray e o delírio da sociedade norte-americana



Daniel Baz dos Santos

Nicholas Ray já era, em 1956, um dos grandes diretores do cinema norte-americano, após ter desenvolvido obras como Johnny Guitar (1954) e Juventude transviada (1955), filme que inventaria um dos maiores ícones pop desta época, o personagem Jim Stark, vivido por James Dean. No entanto, nesse mesmo ano, ele lançaria mais uma obra impressionante, infelizmente hoje pouco celebrada e com um título medonho em português, Delírio de loucura (Bigger than life – no original). A história começa com o dilema de Ed Avery (James Mason na sua melhor forma), professor esgotado após arranjar um segundo emprego em uma radiotaxi para tentar melhorar as condições financeiras de sua família, a esposa (Barbara Rush) e o filho (Christopher Olsen). A abertura do filme investe, no melhor estilo de montagem dialética, no lugar desconfortável ocupado pelo protagonista. Temos um rápido movimento em close que se aproxima da porta da escola, seguido de um impetuoso bando de crianças que deixam o espaço com a energia costumeira desse tipo de grupo para, no corte seguinte, vermos Ed com um visível incômodo no pescoço.






A dinâmica estabelecida pela edição sinaliza para o conflito entre os jovens educandos e o educador, que será explorado posteriormente pelo filme e, obedecendo a coerência da cronologia da trama, por esta crítica também. A seguir, quando vemos o protagonista no seu segundo trabalho, percebemos mais uma vez seu caráter deslocado, já que é o único homem em um ambiente ocupado apenas por mulheres que coordenam as rotas dos taxistas. Essa emasculação, tópico comum em outros filmes de Ray (basta lembrar do pai de Jim, em Juventude transviada, vestido com o avental da mãe, enquanto limpa a casa), será recontextualizada no momento em que Ed chega em sua casa e pede que o filho deixe de assistir a um movimentado faroeste exibido na TV. “Não te aborrece ver isso?” “É sempre a mesma história”, diz o homem com decisão. Uma das intenções claras do diálogo é explicitar que Ed não é o típico herói hollyodiano, o “self made man” que resolve tudo com as próprias mãos, tipo ideal no gênero que ele aqui critica. O plano americano que o acompanha quando entra na sala, e que serviu de base para retratar ícones como John Wayne portando seu potente revólver, é agora um espúrio olhar para o homem cansado e sua maleta de professor, segurada entre as mãos com muita insegurança.




No entanto, a cena também se insere dentro da cinegrafia de Ray que, dois anos antes, já repensara as fórmulas do Western em Johnny Guitar, filme que, na época, desagradou aos fãs de John Ford e Howard Hawks, mas foi adorado por cineastas importantes como François Truffaut. Nele, a figura masculina central era problematizada, passiva diante dos eventos retratados e tendo que dividir o primeiro plano com a poderosa figura feminina da personagem de Joan Crawford. Esse intertexto não só favorece a desconstrução do herói ideal, como também ajuda a entender certas ironias na concepção do filme, como o fato de termos um pôster do Bryce Canyon National Park na parede, remetendo ao espaço onde os míticos pistoleiros transitavam e que serve de contraponto ao modesto lar do professor.



O transtorno visível do protagonista, inicialmente de origem monetária, se manifesta na sua compulsão por desligar todas as luzes da casa. Se no nível das ações a atitude é meramente econômica, em termos simbólicos ela representa o paulatino mergulho do protagonista no mundo das coisas obscuras e o incessante apagamento da realidade circundante diante da crescente autoridade da figura patriarcal (e seu desequilíbrio já manifesto). A casa suburbana, por seu turno, é concebida como contraponto sarcástico ao ideal da geração pós-guerra, criticando a ilusão do “American way of life”. Suas paredes estão repletas de cartazes que mostram territórios estrangeiros como Bolonha, Roma e França, servindo como símbolos do desejo de evasão que irá tomar conta dos três personagens em momentos distintos do filme.



Nesse sentido, o preciso uso da profundidade de campo é fundamental para que percebamos todo tipo de detalhe espacial ao longo das sequências. Além disso, ela permite que, em muitos momentos, vejamos vários cômodos da casa ao mesmo tempo, servindo como uma forma visual de fragmentar o espaço, assim como de desorientar nosso olhar, aproximando-nos do desequilíbrio de Ed. Este frequentemente é situado nas fronteiras entre uma peça e outra da casa, diante das portas e passagens. Isso, se por um lado, realça sua autoridade, já que qualquer movimentação no interior do recinto deve passar por sua figura, também fortalece sua natureza deslocada, ambígua, e enfatiza seu caráter transitório.







Acontece que Ed sofre de uma rara doença terminal que está lhe causando intensas dores. Num de seus primeiros surtos, o homem desmaia na porta de casa, despencando, ironicamente, sobre um abajur cuja luz se mantém acesa. A cena serve para demonstrar os males que sua obsessão já começa a provocar e este cuidado metafórico com as lâmpadas será mantido até o fim do filme. Após a queda, os transtornos do protagonista começam a se tornar cada vez mais instáveis. É nesse sentido que acompanhamos a bateria de exames do herói. Nicholas Ray, em chave surreal, resume o quadro a um único tom de cor avermelhado (signo de seu afundamento na insanidade) e nos mostra um raio-x de Ed engolindo, como se tivéssemos que estar dispostos a mergulhar em seu interior daqui em diante. Para se curar, o professor deve tomar uma droga experimental, a cortisona, que tem como efeito colateral alterar o estado mental do paciente.





Depois do tratamento, vemos Ed voltar à escola, feliz em estar vivo, ainda que tenha que tomar os remédios de seis em seis horas. O diretor não perde tempo em indicar visualmente a sua transformação psicológica. Primeiro, utilizando o recurso do quadro dentro do quadro, emoldurando a figura do professor pela janela do carro que sua cônjuge dirige. Sendo assim, há pelo menos um nível diegético a mais aqui, o que nos afasta do “novo” Ed. Quando finalmente sua esposa vai embora, a câmera o agiganta,sugerindo o delírio de grandeza que ele logo passará a vivenciar. Em seguida, tem-se uma das cenas mais brilhantes do filme, quando o, antes econômico, personagem decide comprar vestidos para a esposa.




Nessa sequência, a profundidade de campo, ampla mais uma vez, é fundamental para que nossa atenção erre pelos inúmeros itens do espaço. Espelhos emprestam um grau desarmônico, refletindo algumas figuras em ângulos oblíquos, ao lado do intenso contraste de cores e da natureza sinistra de certos objetos, com ênfase na sinistra mão vermelha que dá um ar irreal á composição do estabelecimento (não à toa, de cor vermelha). Mais do que isso, o reflexo precisamente posicionado multiplica as figuras, conferindo ainda mais substância ao devaneio de grandeza protagonizado pelo professor. Na verdade, essa exorbitância do cenário é eficaz na sua relação com a atitude esbanjadora de Ed e as imagens de Lou experimentando o vestido se relacionam, mais uma vez de forma dialética, com um único close no cheque assinado pelo protagonista, como se a imensidão do seu desejo (quase fetichista) não coubesse na sua realidade financeira. Essa felicidade repentina seguida da alienação do mundo real envolverá um paulatino desinteresse pelo trabalho. Ed quer apenas ficar em casa jogando futebol americano com seu filho, o que o leva a quebrar objetos da moradia em uma das senas. Esse vandalismo com o espaço familiar (que, assim como o desestímulo em trabalhar, será central em filmes como O iluminado, obviamente inspirado nesse projeto de Ray) também só será realçado pelas ações futuras das personagens.





Nesse sentido, se intensifica o jogo de câmera entre os cômodos da casa. As personagens não mais habitam as mesmas peças e, quando o fazem, se agridem verbalmente ou fisicamente. O clichê do lunático que se vê no espelho quebrado é revigorado por sabermos que é justamente atrás dele que Ed guarda as pílulas que o levam a loucura. Aqui ele já usa o roupão vermelho que marca sua passagem para o território desconhecido da desdita, visto que ao início do filme ele adota cores mais sóbrias, com exceção da pequena gravata rubra. A essa altura, o tresloucado professor prepara um novo plano para a educação. Julga que as crianças são seres doentes que devem ser curadas pelo ensino que, segundo ele, está cada vez mais permissivo. Com essa ideia em mente, resolve abandonar a mulher e filho para se dedicar a um livro sobre a reformulação do modelo educacional.



Em certa cena, finge-se de médico (de fato, pensa ser um, ao constatar que professor e doutor são palavras de mesma origem) e a imagem de uma caixa registradora que toma parte de sua figura, nos relembra do problema inicial do filme (econômico) e revela o domínio de seu realizador sobre os elementos visuais dispostos em cena. Os conflitos em casa só se adensam, como na cena em que vemos Ed discutir com o leiteiro e, principalmente, quando decide disciplinar o filho, obrigando-o a resolve cálculos matemáticos dificílimos. De forma expressionista, sua sombra na parede tem um peso e tamanho assustadores, lembrando talvez um macaco, um dos termos usados por Ed para descrever os jovens ignorantes.




As escadas, que a todo o momento foram importantes, ajudam a redefinir a posição dos personagens que se situam em níveis diferentes, além de servir como representação dos altos e baixos psíquicos de Ed. Toda esta sequência final está repleta de ironias. Começando pelo instinto disciplinador e repressor do homem que segura uma Bíblia na mão e diz que Deus está errado. Além disso, o único beijo entre o casal é uma paródia do ósculo romântico, precisamente situado em momento de intenso conflito e usado pela mulher para tentar ganhar algum tempo. Ed, decidido a matar o filho, inspirado em Abraão, liga a TV para que as pessoas não ouçam os gritos da esposa e o aparelho, que antes exibia o faroeste, agora toca uma animada música de parque de diversões. Quando Wally Gibbs, amigo da família, finalmente chega para detê-lo, o combate entre os dois destrói parte da casa (inclusive a escada, o que mais uma vez sugere sua carga simbólica), já que a luta se alastra por vários cômodos do ambiente. O objetivo é implícito: narrar a destruição do típico lar americano e a tragédia da família suburbana padrão. Contudo, é somente na derradeira sequência que o diretor Nicholas Ray desenvolve toda a amplitude semântica de seu projeto.




Ed é hospitalizado e observamos sua mulher e filho sentados, enquanto aguardam para vê-lo. É nesse momento que o menino se espanta ao reparar em um funcionário limpando o chão, pois não sabia que havia pessoas que trabalhassem naquela hora do dia. Sendo assim, a educação e maturação do jovem envolve a percepção da realidade econômica da sociedade, o que o insere no dilema de seu pai no início do filme. A criança finalmente começa a entender como funciona o sistema econômico que obriga as pessoas a uma jornada sacrificante e que só pode ter consequências traumáticas naqueles inseridos nele. Além disso, o jovem continua de vermelho, cor majoritária nas crianças que saem do colégio na cena inicial e que aqui se relaciona também com a luz no lado de fora do quarto de Ed. As aproximações cromáticas sugerem que o jovem começa a transitar no território que enlouqueceu seu pai.




 Nesse sentido, somente depois da conscientização do menino é que o filme pode se encerrar, evocando um dos seus principais componentes imagéticos: as lâmpadas. Primeiro, dentro do quarto, com as luzes que cegam Ed uma última vez e, acesas, marcam visualmente a sua passagem para a lucidez, uma vez que ao voltar a “ver” como um homem normal, ele se arrepende de tudo o que fez. Seriam essas luzes as mesmas que assustam o jovem Platão nos instantes derradeiros de Juventude transviada? Por fim, observamos a luz vermelha da emergência do hospital se apagando, como um último suspiro daquele drama familiar. A imagem do pai, mãe e filho reunidos que encerra o filme (sob uma luz apagada, entretanto) era necessária para um tempo em que o código Hays jamais permitiria um final sombrio, que relatasse a história crua de um núcleo familiar se deteriorando. No entanto, a harmonia final é situada no leito do hospital, no espaço de convalescença provisória, como uma forma de contestar o sonho da geração dos baby boomers e a ilusão econômica e social que ela representou e ainda representa.



Nenhum comentário:

Postar um comentário