sábado, 5 de março de 2016

O monstro de cada um em Boa noite, mamãe




Daniel Baz dos Santos

Boa noite, mamãe, de Veronika Franz e Severin Fala, é um filme austríaco independente que, de forma desconcertante, atualiza uma série de temas caros ao seu gênero: o terror psicológico. Seguindo prática do Mauro Póvoas, o trabalho poderia ser definido como uma mistura de Os inocentes, de Jack Clayton, Babadook, de Jennifer Kent, e Violência gratuita, de Michael Haneke. Em uma casa isolada em região campesina, uma mulher retorna ao convívio dos filhos, depois de ter passado por uma cirurgia plástica no rosto. Logo, os gêmeos Elias e Lukas começam a suspeitar do caráter agressivo e desconfiado da mãe, o que leva ambos a se perguntarem se esta é realmente a sua verdadeira progenitora. Sendo assim, o primeiro item de interesse da trama é o rosto coberto da convalescente, pálida referência aos monstros clássicos de terror que agem com o rosto escondido (Jason) ou deformado (Fred Krueger), além de traçar um intertexto com Olhos sem rosto, de Georges Franjue um dos seus temas centrais: a reconstrução de um ente querido após trágico acidente. Assim como no filme de 1960, a identidade  da mulher é provisória e indefinida, sendo este o primeiro vetor dos conflitos que se desenvolvem. 



José Gil, no livro Monstros, explica como que a monstruosidade é uma forma de distorcer os sentidos da corporalidade, dando novos valores e atributos a ela. O monstruoso, por essa via, se relaciona diretamente com os valores do corpo humano, pois contém uma “Infra-língua”, ou seja, transgride o estatuto mundano do corporal em prol de uma nova linguagem, uma nova retórica que propõe o equilíbrio entre o familiar e o aberrante na integridade corpórea de determinado sujeito. Situa-se, assim, como a desfiguração máxima do “mesmo” em “Outro”. A pergunta a respeito da consistência do ego se dá de dentro para fora e é assim que o filme consegue, ao menos no início, que nos identifiquemos com a visão dos meninos. A cena na qual um deles vê o olho da mãe superdimensionado pelo espelho é a demonstração mais bem acabada do sentido não racional do corpo, de sua potência quase sobrenatural, desligada da realidade mundana. Neste ponto, a mãe é uma espécie de Minotauro ou Esfinge, ser sobrenatural que guarda uma fronteira desconhecida, um centro inexplorável. É sintomático que, logo no início do filme, ao brincar do popular jogo no qual o participante deve adivinhar o personagem escrito em uma folha grudada em sua testa, a mãe não consiga descobrir que é ela mesma quem os meninos colocaram no papel. É também neste sistema de identificações e questionamentos da natureza de cada um, que podem ser interpretadas as muitas cenas nas quais a mulher surge diante de espelhos.





À indefinição da mãe se somam os quadros que adornam a casa com figuras difusas, imprecisas. Sombras que, no fundo da cena, rimam com a ambiguidade das ações que são empreendidas. Outro item do cenário que reforça este ambiente dúbio é a presença opressiva das persianas. Em geral, elas compõem o quadro com listras horizontais que estabelecem um jogo de claro e escuro presentes no gênero, no mínimo, desde seus exemplares expressionistas. Em certa cena, na falta de persianas, uma escada apresenta esta mesma definição, mostrando o cuidado dos realizadores com o efeito preciso. As janelas servem para contrabalancear também o visto com o não visto, o que intensifica o mistério e - em duas cenas particulares, quando as crianças cerram as persianas enquanto olham para fora da casa – ajudam a aumentar nossa sensação de angústia.






 Enquanto os conflitos entre os familiares se manifestam, os diretores mostram a rotina das crianças, que brincam nos arredores da casa, geralmente de forma agressiva, com socos e encontrões, o que conota um potencial que se confirmará depois, ou se ocupam de tarefas específicas, visitando cavernas, colecionando baratas e cuidando de gatos perdidos. Os meninos também usam máscaras, estratégia que sinaliza para a obscuridade de suas personalidades. No começo, Elias e Lukas se vestem de maneira praticamente idêntica, com exceção da cor da camiseta. Conforme a crise entre eles e a mãe se adensa, ambos passam a se vestir do mesmo jeito e executam, como se fossem uma unidade conflituosa, o castigo que a impostora em sua casa parece merecer. Contrariando os clichês do gênero, toda a sequência mais violenta do filme é feita em um espaço extremamente claro, com janelas abertas por onde entra muita luz. A cama onde a mãe repousa em boa parte do início do filme, torna-se espaço de tortura e punição. Mais uma vez, a obra se relaciona com uma das máximas do gênero, explorando o desejo voyeurístico do espectador, que participa, deseja ver, mas não sabe qual ponto de vista está fadado a assumir (o da mãe presa, ou o das crianças desconfiadas). Talvez por isso, em cena especialmente forte, a câmera corte para uma das paredes da casa, repletos de memorabilia e objetos decorativos (ao fundo, o grito de dor da mãe), como a dizer que a violência se sobrepõe e contamina até mesmo os elementos inicialmente tidos por nós como inofensivos.





Em nível estrutural, o filme retoma o molde clássico do gênero, ou seja, um espaço de ordem (neste caso limitado basicamente à casa), que se transforma em cenário de caos e, normalmente, volta a ser ordenado ao fim. Participam deste território apenas os três protagonistas com uma intrusão notável: os funcionários da cruz vermelha, que batem na casa em busca de doações e recebem volumosa quantia das crianças. A cena serve como um comentário ácido a respeito da sociedade e sua lógica pragmática e desinteressada (note-se quão entediante a dupla é tanto no seu visual quanto no conteúdo dos seus diálogos). É por causa da ineficiência da comunidade em lidar, em nível prático e conceitual, com seus distúrbios que o universo onde se situam os conflitos deve ao fim sucumbir.



Impossível, como forma de dar uma última palavra sobre Boa noite, mamãe não mencionar a dinâmica entre a mãe e os dois meninos, estabelecidas dentro da ideia de“romance familiar”, como desenvolvida por Freud, já que, na fase anterior da puberdade, os gêmeos brincam, devaneiam e se distanciam da figura materna, como se ocupados com as muitas formas de “retificar o real”, visto que já o consideram transtornado. Ambos se perdem na fantasia máxima da mãe substituída por outra melhor, inatingível em todos os aspectos.
Toda a sequência de extrema violência no qual imobilizam a mãe na cama é, portanto, uma forma de retaliação e vingança - ainda essencialmente assexuada, é importante que se diga – e é interessante que ocorra em momento após o divórcio da protagonista, o que desequilibraria as projeções do filho em relação ao pai. Isso explicaria também o desejo de sufocar a voz da mãe e libertá-la em momento oportuno. Além disso, é inevitável que o sentimento de perda dos filhos se associe à ausência da figura paterna. A narrativa da mãe falsa parece ser uma forma encontrada pela criança de associar essa perda à falta da autoridade masculina, o que pode justificar a explosão de violência dos meninos. Esta seria, em outras palavras, uma tentativa de lidar com o desamparo diante da experiência da família fraturada. Dentro desse universo de transgressão diante dos referenciais tidos como "normais", destaca-se a subversão dos papeis familiares convencionais já que, aqui, são os filhos quem acompanham os atos da mãe, utilizando uma babá eletrônica.



A última imagem do filme é propositalmente inverossímil. A família reunida é o contraponto fantasmático do desejo não realizado de Elias. Até porque, ironia maior, a mãe verdadeira é, de fato, a figura concreta, aquela que eles se encarregam de destruir. De todas as monstruosidades exploradas, a criatura criada e distorcida por nossos desejos é, ao fim, aquela que mais amedronta e que rege o nosso destino e daqueles que nos cercam.



Um comentário:

  1. Brilhante análise. Ainda que contenha um pouco de spoiler (verei o filme semana que vem), gostei muito das observações exemplificadas. Parabéns pelo trabalho.

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