Daniel
Baz dos Santos
Boa
noite, mamãe,
de Veronika Franz e Severin Fala, é um filme austríaco independente que, de
forma desconcertante, atualiza uma série de temas caros ao seu gênero: o terror
psicológico. Seguindo prática do Mauro Póvoas, o trabalho poderia ser definido como uma mistura de Os inocentes, de Jack Clayton, Babadook, de Jennifer Kent, e Violência gratuita, de Michael Haneke. Em
uma casa isolada em região campesina, uma mulher retorna ao convívio dos
filhos, depois de ter passado por uma cirurgia plástica no rosto. Logo, os
gêmeos Elias e Lukas começam a suspeitar do caráter agressivo e desconfiado da
mãe, o que leva ambos a se perguntarem se esta é realmente a sua verdadeira progenitora.
Sendo assim, o primeiro item de interesse da trama é o rosto coberto da
convalescente, pálida referência aos monstros clássicos de terror que agem com
o rosto escondido (Jason) ou deformado (Fred Krueger), além de traçar um intertexto com Olhos sem rosto, de Georges Franju, e um dos seus temas centrais: a reconstrução de um ente querido após trágico acidente. Assim como no filme de 1960, a identidade da mulher é
provisória e indefinida, sendo este o primeiro vetor dos conflitos que se
desenvolvem.
José Gil, no livro Monstros, explica como que a monstruosidade é uma forma de distorcer os sentidos da corporalidade, dando novos valores e atributos a ela. O monstruoso, por essa via, se relaciona
diretamente com os valores do corpo humano, pois contém uma “Infra-língua”, ou
seja, transgride o estatuto mundano do corporal em prol de uma nova linguagem, uma nova retórica que propõe o equilíbrio entre o familiar e o aberrante na
integridade corpórea de determinado sujeito. Situa-se, assim, como a desfiguração
máxima do “mesmo” em “Outro”. A pergunta a respeito da consistência do ego se
dá de dentro para fora e é assim que o filme consegue, ao menos no início, que
nos identifiquemos com a visão dos meninos. A cena na qual um deles vê o olho
da mãe superdimensionado pelo espelho é a demonstração mais bem acabada do
sentido não racional do corpo, de sua potência quase sobrenatural, desligada da
realidade mundana. Neste ponto, a mãe é uma espécie de Minotauro ou Esfinge,
ser sobrenatural que guarda uma fronteira desconhecida, um centro inexplorável.
É sintomático que, logo no início do filme, ao brincar do popular jogo no qual o
participante deve adivinhar o personagem escrito em uma folha grudada em sua
testa, a mãe não consiga descobrir que é ela mesma quem os meninos colocaram no
papel. É também neste sistema de identificações e questionamentos da natureza
de cada um, que podem ser interpretadas as muitas cenas nas quais a mulher
surge diante de espelhos.
À indefinição da mãe se somam os quadros que adornam a casa com figuras difusas, imprecisas. Sombras que, no fundo da cena, rimam com
a ambiguidade das ações que são empreendidas. Outro item do cenário que reforça
este ambiente dúbio é a presença opressiva das persianas. Em geral, elas compõem
o quadro com listras horizontais que estabelecem um jogo de claro e escuro
presentes no gênero, no mínimo, desde seus exemplares expressionistas. Em certa
cena, na falta de persianas, uma escada apresenta esta mesma definição,
mostrando o cuidado dos realizadores com o efeito preciso. As janelas servem para
contrabalancear também o visto com o não visto, o que intensifica o mistério e -
em duas cenas particulares, quando as crianças cerram as persianas enquanto
olham para fora da casa – ajudam a aumentar nossa sensação de angústia.
Enquanto
os conflitos entre os familiares se manifestam, os diretores mostram a rotina das crianças, que brincam nos arredores da casa, geralmente de forma agressiva,
com socos e encontrões, o que conota um potencial que se confirmará depois, ou
se ocupam de tarefas específicas, visitando cavernas, colecionando baratas e
cuidando de gatos perdidos. Os meninos também usam máscaras, estratégia que
sinaliza para a obscuridade de suas personalidades. No começo, Elias e Lukas se vestem de
maneira praticamente idêntica, com exceção da cor da camiseta. Conforme a crise
entre eles e a mãe se adensa, ambos passam a se vestir do mesmo jeito e executam, como
se fossem uma unidade conflituosa, o castigo que a impostora em sua casa parece
merecer. Contrariando os clichês do gênero, toda a sequência mais violenta do
filme é feita em um espaço extremamente claro, com janelas abertas por onde
entra muita luz. A cama onde a mãe repousa em boa parte do início do filme,
torna-se espaço de tortura e punição. Mais uma vez, a obra se relaciona com uma
das máximas do gênero, explorando o desejo voyeurístico do espectador, que
participa, deseja ver, mas não sabe qual ponto de vista está fadado a assumir
(o da mãe presa, ou o das crianças desconfiadas). Talvez por isso, em cena especialmente
forte, a câmera corte para uma das paredes da casa, repletos de memorabilia e
objetos decorativos (ao fundo, o grito de dor da mãe), como a dizer que a
violência se sobrepõe e contamina até mesmo os elementos inicialmente tidos por nós como inofensivos.
Em nível estrutural, o filme retoma o
molde clássico do gênero, ou seja, um espaço de ordem (neste caso limitado
basicamente à casa), que se transforma em cenário de caos e, normalmente, volta
a ser ordenado ao fim. Participam deste território apenas os três protagonistas com uma intrusão notável: os funcionários da cruz vermelha, que batem na casa em busca de
doações e recebem volumosa quantia das crianças. A cena serve como um
comentário ácido a respeito da sociedade e sua lógica pragmática e
desinteressada (note-se quão entediante a dupla é tanto no seu visual quanto no conteúdo dos seus diálogos). É por causa da ineficiência da comunidade em lidar, em nível
prático e conceitual, com seus distúrbios que o universo onde se situam os
conflitos deve ao fim sucumbir.
Impossível, como forma de dar uma última
palavra sobre Boa noite, mamãe não
mencionar a dinâmica entre a mãe e os dois meninos, estabelecidas dentro da ideia de“romance familiar”, como desenvolvida por Freud, já que, na
fase anterior da puberdade, os gêmeos brincam, devaneiam e se distanciam da
figura materna, como se ocupados com as muitas formas de “retificar o real”,
visto que já o consideram transtornado. Ambos se perdem na fantasia máxima da
mãe substituída por outra melhor, inatingível em todos os aspectos.
Toda a sequência de extrema violência no
qual imobilizam a mãe na cama é, portanto, uma forma de retaliação e vingança
- ainda essencialmente assexuada, é importante que se diga – e é interessante
que ocorra em momento após o divórcio da protagonista, o que desequilibraria as
projeções do filho em relação ao pai. Isso explicaria também o desejo de sufocar a voz da mãe e libertá-la em momento oportuno. Além disso, é inevitável que o sentimento de perda dos filhos se
associe à ausência da figura paterna. A narrativa da mãe falsa parece ser uma
forma encontrada pela criança de associar essa perda à falta da autoridade
masculina, o que pode justificar a explosão de violência dos meninos. Esta seria, em outras palavras, uma tentativa de lidar com o desamparo diante da experiência da família fraturada. Dentro desse universo de transgressão diante dos referenciais tidos como "normais", destaca-se a subversão dos papeis
familiares convencionais já que, aqui, são os filhos quem acompanham
os atos da mãe, utilizando uma babá eletrônica.
A última imagem do filme é propositalmente inverossímil. A família
reunida é o contraponto fantasmático do desejo não realizado de Elias. Até
porque, ironia maior, a mãe verdadeira é, de fato, a figura concreta, aquela que
eles se encarregam de destruir. De todas as monstruosidades exploradas, a
criatura criada e distorcida por nossos desejos é, ao fim, aquela que mais
amedronta e que rege o nosso destino e daqueles que nos cercam.
Brilhante análise. Ainda que contenha um pouco de spoiler (verei o filme semana que vem), gostei muito das observações exemplificadas. Parabéns pelo trabalho.
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