No janeiro passado, o
diretor italiano Ettore Scola morreu aos 84 anos. Em sua homenagem, o blog
Cinema em Prosa publica uma pequena crítica que escrevi já há alguns anos, mais
exatamente em 2003, depois de assistir a Um
dia muito especial em uma das salas da Casa de Cultura Mario Quintana, um
dos locais responsáveis por minha educação cinematográfica.
Mauro Nicola
Póvoas
Uma frase do personagem de Marcello Mastroianni, Gabriele, logo após
consumada a relação sexual com Antonietta (Sophia Loren), parece resumir o
espírito melancólico de Um dia muito
especial (1977), obra-prima (são poucos os filmes que podem receber este
título), de Ettore Scola: “Foi muito bonito, mas não resolve nada”. A história
que os dois viveram naquele dia tão especial talvez fique vincada neles para
sempre, mas aparentemente não resolverá os problemas que os afligiam. Fica,
ainda, a impressão de que nunca mais eles se vejam, sensação plasmada com bastante
nitidez no desconsolo de Antonietta, apagando, uma a uma, as luzes da casa, o
que metaforiza com exatidão a sensação de fim inexorável de algo – e a amargura
do coração dela repassa imediatamente para o espectador. Não à toa, quando
apaga-se a luz do abajur e imediatamente começam a correr os créditos finais, me
perguntei se as 20, 25 pessoas que estavam na sala de exibição comigo (na Casa
de Cultura Mario Quintana, em
Porto Alegre ) sentiam com a mesma intensidade do que
eu a emoção que o filme tinha conseguido transmitir – para minha surpresa e
satisfação, um homem atrás de mim comentou com outro, ao seu lado: “Este filme
deveria ser aplaudido de pé”. Nada como a recepção coletiva do cinema, para
confirmar (ou não) suspeitas e incertezas.
Num nível metatextual, a frase de Gabriele pode, ainda, ser uma referência
ao próprio filme: lindo, maravilhoso, mas que afinal não serve para nada,
pragmaticamente falando. Aliás, como qualquer outra obra artística, no mundo
prático aqui fora, a beleza denunciatória da arte parece não sensibilizar aos
homens, que continuam a matar, a oprimir, a ter a tendência de aplainar as
opiniões, tal como o Nazismo a partir da década de 30, exatamente a época retratado
pelo filme.
Neste sentido, pode-se dizer que o perfeito trânsito de Scola entre o
drama universal e o drama particular marca a película. De início, temos uma sequência
de alguns minutos em que a ênfase recai sobre um documentário, em preto e
branco, que retrata, em tom ufanista, a visita de Hitler a Roma, recepcionado
por Mussolini. Somente após isso a câmera foca o prédio que será a locação que
não mais abandonará.
Apenas um aparelho de rádio incessantemente ligado trará notícias para
aquele labirinto de apartamentos habitados, naquele instante, somente por
Grabrielle, Antonietta e a velha zeladora. Aos poucos, após uma vista geral, a
câmera concentra-se numa vida, a da mulher que, casada com um homem bruto e mãe
de seis filhos, vive quase que somente para atendê-los, servi-los, arrumá-los,
cozinhar para eles. Tomamos conhecimento da primeira opressão retratada no filme:
a da mulher, completamente amassada pelas tarefas de casa, sem direito a prazer
algum, seja o da leitura (quantas vezes ela nega Os três mosqueteiros, sob a alegação de que não tem tempo para
aquilo, ressaltando a solidão como fator indispensável do ato de leitura –
aliás, chama a atenção de Antonietta o grande número de livros que o solitário
Gabriele possui), seja o de ir ver Hitler (no contexto, isso é uma diversão, tanto que praticamente
todas as pessoas vão ao programa), seja o sexual, já que um homem homossexual
deu-lhe o que, há muito tempo ela não sentia com o homem heterossexual que
tinha em casa, numa visão desconstrutora e ao mesmo tempo irônica do componente
machista da sociedade italiana, por que não dizer de todas as sociedades do
mundo.
Quando o pássaro (ou Antonietta, na metáfora evidente) escapa da gaiola,
não é à toa que ele pousa na janela de um outro oprimido: do outro lado da
janela, mais perto do que Antonietta pudesse imaginar, está um homossexual, que
não aceita os ditames da sociedade, sendo assim acusado de comunista,
depravado, antifascista. Desempregado, sentindo que os tempos que se avizinham
para pessoas como ele não serão fáceis, Gabriele está prestes a se suicidar,
quando é interrompido pela campainha. Como a pressão da sociedade patriarcal
não aceita a liberdade das mulheres nem daqueles que não se encaixam naquilo
considerado como a “normalidade” sexual, há logo a imediata empatia entre os
dois excluídos.
Se por um lado Scola fala-nos do desmoronamento da instituição familiar e
da falta de condições de se pensar e agir livremente, o diretor italiano não
pensa somente no drama de um ou outro indivíduo perdido num condomínio romano,
mas retrata também a opressão que se debruçava sobre toda a sociedade italiana
da época. Claro que o plano que mais interessa a Scola, num primeiro momento, é
o particular, mas a ditadura mais geral do Nazi-Fascismo permeia todo o filme,
na cena inicial já aludida; no fato de todos terem ido à recepção do Führer; nas bandeiras estendidas nas
sacadas; no rádio, que onipresentemente não para de transmitir todos os fatos
acontecidos; na velha zeladora, que representa todo o conservadorismo da
sociedade no microcosmos que ali se estabelece; no interesse que Antonietta
mostra por Mussolini, plasmado no caderno de fotos do ditador italiano.
Ao fim, agora que ela já conheceu uma outra experiência, e essa
experiência foi tão boa, o que lhe interessa cozinhar para a família (só fez
sopa para a janta, fato do qual o marido reclama) ou então as notícias que sairão
nos jornais amanhã? O álbum de Mussolini não importa mais agora – na verdade,
pode-se perguntar se a ela foi dada a opção de gostar ou não do Duce.
A chegada da família, pai e seis filhos, a casa marca uma fina ironia,
que joga com dois tempos da obra, o da fábula, na década de 1930, e o da
realização, na década de 1970. Ao dizer, em 1938, que “Os americanos não
entendem nada de armas, mas sim de filmes, quem entende de armas somos nós, os
italianos”, o pai está sendo sério, sério como nunca foi, porém os espectadores
de 1977 (ou de 2003, ou de qualquer ano) não podem conter um riso irônico,
sabendo que depois da 2ª Guerra Mundial, da bomba atômica de Nagasaki e
Hiroshima, do napalm no Vietnã, das intervenções na América Latina e no Oriente
Médio, os americanos demonstraram que entendem bastante de armas. Por outro
lado, uma cinematografia que enveredava cada vez mais por filmes como Tubarão (1975) e Guerra nas Estrelas (1977), em contraposição a um país que tinha
diretores como Fellini, De Sica, Rossellini, Antonioni, Visconti, Pasolini,
Scola e uma escola de cinema, a neorrealista, forjada na depressão econômica
imposta pelas armas aliadas, leva à pergunta: quem sabe fazer cinema, de
verdade?
O dia foi especial duplamente, tanto para Antonietta, como para o marido,
Emanuele, que mal sabe que foi traído pela esposa, a qual imagina ser alguém
que está sob seu completo domínio. Para Emanuele, o dia foi muito bom devido à
comprovação da superioridade do homem, do branco, do heterossexual, e a tudo
isso ele quer comemorar com a típica atividade impositiva masculina, a
penetração: “Vou para a cama; estou te esperando, Antonietta, e se tivermos o
sétimo filho, se chamará Adolf”; para a mulher, fazer sexo com o esposo,
naquele dia, seria uma profanação, tanto que ela de imediato diz: “Não, hoje
não”. Sua epifania precisa ser fruída solitariamente, na leitura e na
observação discreta da ida do vizinho para longe, e na sensação de que sim, foi
bonito, mas parece que pouco servirá, já que nada do que foi sentido por ela
pode ser externado (o marido, por seu turno, não cansa de repetir, na sua
superioridade masculina, “Que dia especial!”), pelo menos aos seus pares da
diegese. Já nós, os emocionados espectadores, eternos voyeurs, temos vontade de dizer para ela que sim, sabemos de tudo,
a apoiamos, a compreendemos, tanto que saímos do cinema confusos, amargurados,
desesperançados: sim, a arte serve para muita coisa, em especial para nos tirar
do prumo e nos fazer pensar sempre mais.
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