Em janeiro, um dos
diretores de que eu mais gostava, o italiano Ettore Scola, faleceu. Agora, em
julho, outro cineasta de minha predileção se foi, o iraniano Abbas Kiarostami.
2016 não está sendo fácil. Tinha aqui comigo este pequeno texto, inédito, que
escrevi depois de assistir a O vento nos
levará no cinema, há alguns anos. Penso que este é o momento adequado de
dar publicidade a ele.
Mauro Nicola
Póvoas
Lá pelas tantas, em O vento nos
levará (Bad ma ra khahad bord,
1999, direção de Abbas Kiarostami), o personagem que vem de fora, aquele que é
civilizado, que possui telefone celular e carro, reclama da ociosidade que
sente, já que a missão para a qual está destinado – filmar um ritual típico da
vila de Siah Dareh, que se desencadeia quando alguém morre – fica
impossibilitada de se concretizar, já que a vítima não quer perecer. Na
verdade, o Engenheiro (único personagem não-nomeado no filme; todos os outros são
chamados pelos seus nomes “reais”, o que ajuda a borrar as fronteiras entre
ficção e documentário) sente-se deslocado naquele local, em que todos
têm as suas tarefas rigidamente marcadas, e parecem destinadas a cumpri-las ad infinitum: há aquele que abre o buraco
e aquela que extrai o leite da vaca; há a que faz o pão e o que estuda para os
infindos exames; há aquela que engravida e dá à luz em ritmo quase industrial;
há o que trabalha com o ensino e o que mexe com a terra.
Não por acaso, são todas tarefas ligadas à vida ou àquilo que carrega
consigo símbolos essenciais, como a terra, a natureza e o alimento, ou ainda
àquilo que supostamente permite o vislumbre de um futuro melhor, por meio da
educação: ou seja, signos positivos. O personagem principal, por sua vez, vem
marcado negativamente, pela ranzinzice e maldade que sutilmente (aliás, no
filme, tudo é sutil) marca suas atitudes, como quando vira a tartaruga com o
casco para baixo ou no momento em que é grosseiro com o menino que serve de
cicerone pelos caminhos da vila iraniana. No início, para o mesmo menino, o
homem parece já tentar justificar seu comportamento que aflorará
posteriormente, exemplificando que, como as máquinas, os homens podem “pifar” a
qualquer momento, o que sempre traz injustiça e incompreensão.
O deslocamento de lugar, forçado ou não, no entanto, sempre acarreta transformações
no indivíduo. Aqui, a viagem faz com que o Engenheiro passe a enxergar a vida
pelo viés da... vida, e não pelo da morte, pois o que o trio de personagens –
embora dois deles nunca apareçam – vai buscar na longínqua localidade, senão um
ritual de morte? O release de
divulgação já aponta: “A vida insiste em vencer neste filme que ganhou o Prêmio
do Júri do festival de Veneza/99”: a vida está lá, explodindo em todos os cantos,
mostrada aos espectadores parcimoniosamente pela câmera – as cenas dos
cachorros brincando e correndo; a velha que, motivo da ida dos “estrangeiros” à
vila, teima em não morrer, contra todas as previsões; o homem que, cavando um
buraco, milagrosamente não morre depois de um soterramento; a presença do
médico, que resume a esperança.
Aos poucos, esses sinais de vida vão se entranhando no homem que, a
princípio, concentra a sua atenção apenas em atender ao telefone celular que
toca incessantemente, cena-chave que se repete quatro ou cinco vezes ao longo
do filme. Opera-se, desta maneira, uma metamorfose, com a presença de elementos
vitais justapondo-se ao impulso da morte que move o filme em seu início. Assim ,
o personagem principal encontrará uma espécie de redenção, seja quando avisa a
tempo aos colegas do cavador de buracos do soterramento, seja quando pede ao
médico que visite a velha que está prestes a morrer.
Os passeios na garupa do médico, aliás, complementam esse percurso da
mudança. O Engenheiro transmuda-se, do motorista da caminhonete que se desloca
de cima para baixo sem notar a paisagem à volta, em passageiro: assim postado,
em posição secundária, pode melhor observar a região. A beleza da natureza do
lugar é já referida no início do filme e não é à toa que o cartaz da película
traz como imagem-símbolo os dois personagens na moto, em sintonia com a
imensidão da paisagem.
Em suma, o Engenheiro transforma-se, do "abutre" que fica à espreita da morte para poder satisfazer o mundo "civilizado" – ansiosamente à espera para poder se deliciar com os rituais extravagantes e plásticos da população interiorana –, em observador que delicadamente passa a interferir na vida dos nativos: as várias caronas, a indicação ao médico da velha, a preocupação com o bebê vizinho que chora, a "cola" ao menino.
A ociosidade, aquela referida inicialmente, parece estar ligada à
negatividade, à morte, mas, na verdade, é só o nome dado pelo Engenheiro a uma
falta de percepção de como se dá a rotina no lugar, em que tudo é mais lento,
mais calmo; as coisas, porém, estão ocorrendo à sua volta, e ao natural ele
começa a se integrar na comunidade e a ajudá-la.
O vento nos levará mostra que uma
vida aparentemente sem destino e sem sentido, conduzida de forma errônea, pode recriar-se
a partir de situações e tramas que surgem e se constroem, numa constante redescoberta
de novas trilhas e caminhos. Resumindo, é um filme sobre a expectativa de
mudança que todos trazem consigo, algo, enfim, próprio aos seres humanos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário