quinta-feira, 28 de julho de 2016

Uma homenagem a Abbas




Em janeiro, um dos diretores de que eu mais gostava, o italiano Ettore Scola, faleceu. Agora, em julho, outro cineasta de minha predileção se foi, o iraniano Abbas Kiarostami. 2016 não está sendo fácil. Tinha aqui comigo este pequeno texto, inédito, que escrevi depois de assistir a O vento nos levará no cinema, há alguns anos. Penso que este é o momento adequado de dar publicidade a ele.
Mauro Nicola Póvoas

Lá pelas tantas, em O vento nos levará (Bad ma ra khahad bord, 1999, direção de Abbas Kiarostami), o personagem que vem de fora, aquele que é civilizado, que possui telefone celular e carro, reclama da ociosidade que sente, já que a missão para a qual está destinado – filmar um ritual típico da vila de Siah Dareh, que se desencadeia quando alguém morre – fica impossibilitada de se concretizar, já que a vítima não quer perecer. Na verdade, o Engenheiro (único personagem não-nomeado no filme; todos os outros são chamados pelos seus nomes “reais”, o que ajuda a borrar as fronteiras entre ficção e documentário) sente-se deslocado naquele local, em que todos têm as suas tarefas rigidamente marcadas, e parecem destinadas a cumpri-las ad infinitum: há aquele que abre o buraco e aquela que extrai o leite da vaca; há a que faz o pão e o que estuda para os infindos exames; há aquela que engravida e dá à luz em ritmo quase industrial; há o que trabalha com o ensino e o que mexe com a terra.



Não por acaso, são todas tarefas ligadas à vida ou àquilo que carrega consigo símbolos essenciais, como a terra, a natureza e o alimento, ou ainda àquilo que supostamente permite o vislumbre de um futuro melhor, por meio da educação: ou seja, signos positivos. O personagem principal, por sua vez, vem marcado negativamente, pela ranzinzice e maldade que sutilmente (aliás, no filme, tudo é sutil) marca suas atitudes, como quando vira a tartaruga com o casco para baixo ou no momento em que é grosseiro com o menino que serve de cicerone pelos caminhos da vila iraniana. No início, para o mesmo menino, o homem parece já tentar justificar seu comportamento que aflorará posteriormente, exemplificando que, como as máquinas, os homens podem “pifar” a qualquer momento, o que sempre traz injustiça e incompreensão.



O deslocamento de lugar, forçado ou não, no entanto, sempre acarreta transformações no indivíduo. Aqui, a viagem faz com que o Engenheiro passe a enxergar a vida pelo viés da... vida, e não pelo da morte, pois o que o trio de personagens – embora dois deles nunca apareçam – vai buscar na longínqua localidade, senão um ritual de morte? O release de divulgação já aponta: “A vida insiste em vencer neste filme que ganhou o Prêmio do Júri do festival de Veneza/99”: a vida está lá, explodindo em todos os cantos, mostrada aos espectadores parcimoniosamente pela câmera – as cenas dos cachorros brincando e correndo; a velha que, motivo da ida dos “estrangeiros” à vila, teima em não morrer, contra todas as previsões; o homem que, cavando um buraco, milagrosamente não morre depois de um soterramento; a presença do médico, que resume a esperança.



Aos poucos, esses sinais de vida vão se entranhando no homem que, a princípio, concentra a sua atenção apenas em atender ao telefone celular que toca incessantemente, cena-chave que se repete quatro ou cinco vezes ao longo do filme. Opera-se, desta maneira, uma metamorfose, com a presença de elementos vitais justapondo-se ao impulso da morte que move o filme em seu início. Assim, o personagem principal encontrará uma espécie de redenção, seja quando avisa a tempo aos colegas do cavador de buracos do soterramento, seja quando pede ao médico que visite a velha que está prestes a morrer.
Os passeios na garupa do médico, aliás, complementam esse percurso da mudança. O Engenheiro transmuda-se, do motorista da caminhonete que se desloca de cima para baixo sem notar a paisagem à volta, em passageiro: assim postado, em posição secundária, pode melhor observar a região. A beleza da natureza do lugar é já referida no início do filme e não é à toa que o cartaz da película traz como imagem-símbolo os dois personagens na moto, em sintonia com a imensidão da paisagem.



Em suma, o Engenheiro transforma-se, do "abutre" que fica à espreita da morte para poder satisfazer o mundo "civilizado"  ansiosamente à espera para poder se deliciar com os rituais extravagantes e plásticos da população interiorana –, em observador que delicadamente passa a interferir na vida dos nativos: as várias caronas, a indicação ao médico da velha, a preocupação com o bebê vizinho que chora, a "cola" ao menino.
 A ociosidade, aquela referida inicialmente, parece estar ligada à negatividade, à morte, mas, na verdade, é só o nome dado pelo Engenheiro a uma falta de percepção de como se dá a rotina no lugar, em que tudo é mais lento, mais calmo; as coisas, porém, estão ocorrendo à sua volta, e ao natural ele começa a se integrar na comunidade e a ajudá-la.




O vento nos levará mostra que uma vida aparentemente sem destino e sem sentido, conduzida de forma errônea, pode recriar-se a partir de situações e tramas que surgem e se constroem, numa constante redescoberta de novas trilhas e caminhos. Resumindo, é um filme sobre a expectativa de mudança que todos trazem consigo, algo, enfim, próprio aos seres humanos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário