Mauro Nicola Póvoas
Sei que não
estou sendo nada original ao dividir essas pequenas notas analíticas de Os oito odiados em exatamente oito
tópicos. Lembro pelo menos do UOL fazendo algo do gênero. Comentei, em texto
sobre Django livre, que estava
curioso pelo próximo projeto de Quentin Tarantino, a princípio Kill Bill III. Na crítica de Django livre, falei em esgotamento do
diretor. Aqui, neste Oito, o homem
repete-se de novo. Aí me dei conta: não posso ficar cobrando QT por causa disso,
fazendo reparos em seus filmes por trazerem aspectos que frequentemente voltam
à tona. Ora, cinema é o que ele sabe fazer, e faz muito bem, repetindo-se ou
não. Vamos lá.
1) Mas começo mesmo por esse
ponto. A repetição de cenas pontuais ou a intertextualidade interna e externa. Uma
fórmula que gosto muito de fazer, em termos de blague, já que é bastante
redutora, é definir um filme qualquer pelas suas referências mais diretas.
Senão vejamos, então, como ficaria com Oito:
Uma noite alucinante + Cães de aluguel + Um drink no inferno + Bastardos
inglórios + Django livre. Quatro filmes
são roteirizados por QT, o que já aponta para a egolatria do diretor. Aliás, só
o mito de Narciso explica a narração em off
impetrada pelo diretor no meio de Oito,
na minha opinião completamente dispensável; OK, sempre implicarei com toda e
qualquer narração em off em um filme,
fora Blade runner, of course! Se a narrativa em off não funciona, outro recurso
cinematográfico que QT sempre utilizou muito bem, o flashback, aqui retorna triunfalmente, depois de não aparecer em Django. Voltando, porém, aos filmes
acimas listados, temos: a orgia sanguinolenta de pessoas confinadas num lugar
com forças do mal, retirados de Noite
e Drink (só que o mais aterrorizante
em Oito é que a força do mal, aqui, é
o homem); a intrincada engrenagem armada por criminosos acuados em um recinto,
de Cães; o porão como espaço da
surpresa, retirado de Bastardos; a retomada
da questão do negro, do gênero faroeste e da época em que se passa a história,
de Django. Falando nisso, confesso
que torço para que Tarantino volte logo ao presente na ambientação de suas
narrativas, depois de três filmes alocados no passado; assim, ele retomaria as
suas deliciosas referências ao mundo contemporâneo (por exemplo, Madonna em Cães; McDonald’s em Pulp fiction etc.). E mesmo as gemas pop das suas trilhas sonoras talvez voltassem a ser mais utilizadas,
pois introduzir Chuck Berry num faroeste ou num filme de guerra torna-se mais
difícil.
2) Ainda no terreno das referências,
não falei acima, mas há um quê de Sherlock Holmes (ou dos livros de Agatha
Christie) no filme, com as deduções de Major Marquis Warren levando-o, passo a
passo, a desvendar o intrincado jogo armado na cabana. O negro é o mais esperto
ali, embora termine o filme sem sua genitália, ele que tinha a usado como
instrumento de poder e desforra em relação aos brancos, anteriormente; já John
Ruth, num trocadilho com seu nome, é rude, o caipora estúpido que acredita na
lorota da carta de Lincoln. Não à toa, é um dos primeiros a morrer, enquanto o
negro, que possui um toque de refinamento, é o último a se despedir – na
verdade, embora não morra em cena, vai morrer. Isso já estava em Django, em que o negro pistoleiro vence
o branco Candie em todos os quesitos, dos físicos aos intelectuais.
3) A partir do dito acima, de
novo a questão das “minorias” – negro, mulher, estrangeiro – é problematizada
por QT em um de seus filmes. Os oito
odiados é uma incisiva crítica social-política que alegoricamente, por meio
do tabuleiro de xadrez montado na casa, mostra como se formataram os EUA de
hoje. É uma nação que, sob a capa da democracia e da igualdade, fomentou-se a
partir do signo da morte, das armas, do capitalismo desenfreado, em que cabeças
humanas são disputadas a tapa em troco de um punhado de dólares a mais. Sendo
assim, não surpreendem o discurso de um Donald Trump, contra a imigração, ganhar
popularidade na atual corrida presidencial estadunidense; ou que Obama até hoje
não seja engolido pela classe média americana; ou que as mortes por tiroteio em
fábricas ou escolas aconteçam quase que uma vez por semana por lá. É isso que
Tarantino quer mostrar – no cubículo de Minnie, está o cadinho que ferveu e deu
origem ao que hoje chamamos de EUA.
4) Sim, não é um faroeste, é um filme
que fala da formação geopolítico-social de uma nação (o nascimento de uma
nação, ecoando Griffith). Nortistas e sulistas, que se odeiam, dão origem a uma
nação pretensamente una, forjada pelo ódio, pelas armas, pela guerra, pela pena
de morte, pelo racismo. Não adianta fugir do passado. Embora seja uma colônia
europeia, ou seja, todos os seus habitantes são imigrantes (fora os índios
nativos), nos EUA viceja uma ojeriza àquele que vem de fora, tanto que o
mexicano tem a morte mais marcante, esdrúxula, macabra – parece que estamos
assistindo a Scanners: sua mente pode
destruir, clássico de David Cronenberg. E se os negros colaboraram, e muito,
para a construção do país, embora isso seja pouco reconhecido, a metáfora de
apenas um cavalo branco estar em meio a cinco equinos negros, dos seis que
conduzem a carruagem de John Ruth, diz muita coisa dos trabalhos pesados a que
os negros foram forçados durante o período escravocrata, que está tatuado na
sociedade e que aparece no filme de maneira bem pontual nos inúmeros “nigger” ditos
pelas personagens ao longo da projeção. Agora, o final é de uma ironia sublime,
em que o nortista e o sulista (ou o negro e o branco) se unem, talvez um pouco
forçosamente, para enforcar a mulher, mãe de todos os males – Daisy Domergue é
uma Caixa de Pandora rediviva. A cena orgiástica, perturbadora e algo artificial
propõe como solução uma paz duvidosa e equilibrada no fio da navalha, e que vai
dar na sociedade exatamente machista de hoje. Ironia das ironias, esse
patriarcado (heterossexual, é evidente) que extermina mulheres e bate nelas constrói-se
numa cena, os últimos fotogramas do filme, com nítido viés homossexual, em que
se nota a mescla das pulsões freudianas de sexo e de morte, exatamente como Bataille
aponta em seu estudo clássico sobre o erotismo: numa cama, languidamente, o
branco recosta-se sobre o negro mutilado em seus órgãos genitais. Exaustos
depois do ato sexual-mortal consumado, ao invés de fumarem cigarros e
perguntarem reciprocamente “Foi bom para você?”, o branco pede a famosa carta de
Lincoln e a lê com voz delicada. Desce o pano.
5) A mulher tarantinesca tem o
poder em Jackie Brown e Kill Bill. Já em Oito, se ela é a força-motriz que conduz o filme, também é ela quem
mais apanha e sofre, com o detalhe de que não sabemos exatamente quais foram os
seus crimes. Uma mulher vilã num mundo tão masculino é já um dado ameaçador da
ordem, mas não há espaço no filme nem para o discurso feminista do
empoderamento da mulher, nem para a via da fetichização do sexo feminino (a doce,
a frágil, a bela, a que dá a vida etc.). Há tão somente agressão e humilhação contra
a mulher, que sofre nas mãos dos homens violência inenarrável, transformando-se
em mero objeto que permitirá o enriquecimento a partir da sua entrega ao poder
estabelecido (outra ironia: num universo caótico como aquele, Ruth não quer
fazer a justiça com as próprias mãos. Mais uma prova de sua ingenuidade para
viver naquele mundo?). É uma face cruel da realidade emulada pelo filme: um homem
quer ficar rico à custa da morte de uma mulher. Ou, como foi dito acima, um
conluio entre forças masculinas antes antagonistas vislumbra um caminho para
uma sociedade, naquela época ainda em formação, e que se dá por meio da eliminação
da mulher. O que e onde vai dar um país que se alicerça em tais valores e vetores?
Repetindo: na verdade, Oito,
aparentemente um faroeste, trata da formação de um país que hoje, embora seja odiado
por muitos, é por outro lado amado e buscado por outros tantos.
6) Ninguém diz a verdade no
filme; melhor, não há como saber se o que é falado é mentira ou não. Se já não bastasse
ser uma civilização montada no ódio e no rancor, ainda se seguem a mentira, a
falsidade, a hipocrisia. Existem os quinze homens do irmão de Daisy, à espera
de uma ordem, em Red Rock? Chris Mannix será mesmo o novo xerife designado para
a mesma Red Rock? Quem eram aqueles homens que o major negro carregava? A carta
de Lincoln era verdadeira? O caubói vai passar o Natal com a sua mãe? Houve a felação
do filho do general no major? O inglês é mesmo o carrasco? O mexicano é o
encarregado da estalagem na ausência de Minnie? Algumas dessas perguntas são respondidas
e desmascaradas, outras não. Interessante que se a palavra pouco vale, os papéis
tampouco, pois carregá-los consigo não prova muita coisa num mundo dominado
pela força bruta e pela dissimulação.
7) Preciso admitir: QT é um
deleite, é para ver e rever, é cinema para quem gosta de cinema, já tinha dito
isso antes em algum lugar. Pensando na parte mais técnica, destaco aqui a
trilha sonora original de Ennio Morricone e a linda fotografia, emoldurada pela
brancura sem fim da neve (ambas, música e fotografia, por sinal, indicadas ao
Oscar). A longa duração, que pode cansar aos incautos, aqui de novo é a medida
para uma preparação lenta e longa do espectador para o que está por vir, e
sempre algo está por vir num filme de Tarantino, senão não seria uma filme de
Tarantino. São 167 minutos, a sua maior película, batendo em dois minutos Django.
8) Para fechar, volto à questão:
para onde vai Tarantino? Em entrevista, comentou que se dedicar ao teatro seria
uma possibilidade, tanto que Oito tem
muito de cênico, com metade do filme se passando num único espaço, em que
ninguém sabe as intenções dos outros, lembrando, aliás, A ratoeira, a famosa peça de Agatha Christie. Na situação em que se
encontram as personagens, verifica-se também elementos de teatro do absurdo e
de grand guignol – talvez esteja aí o
futuro do cineasta. Também em entrevistas, ele disse que quer fechar a sua
conta em dez filmes como diretor, sendo este o oitavo. É uma conta de
mentiroso, pois Kill Bill é
considerado um ou dois filmes? À prova de
morte, conforme a resposta sobre Kill
Bill, então, entra ou não entra. Há ainda o episódio de Grande Hotel e o seu primeiro filme, a
comédia amadora My best friend’s birthday.
E mesmo os oito odiados do título são difíceis de estipular, já que lá pelas
tantas temos nove figuras na cena, sendo uma delas o cocheiro O. B. Depois
entra mais uma personagem na cena, saída do alçapão, somando dez. Os oito são
os passageiros, quatro mais quatro, que chegam nas duas carruagens, excluído o
general? Ou se coloca o general e sai a moça? Há ainda pelo menos uma outra
“pegadinha” que Tarantino espalha ao redor da produção: o trailer possui uma imagem, alguém de vermelho sendo atirado de cima
de uma diligência, que não está no filme. Essas questões todas, óbvio, são propositais,
a fim de deixar o espectador pensativo e/ou confuso. Enfim, neste momento, o importante
para Tarantino era fechar de uma vez a conta em torno do número mágico de oito,
para coincidir os oito do título com os oito supostos filmes, odiados pelos
detratores, amados pelas fãs. Fico neste último grupo[1].
[1]
Poderia ainda, para roubar ideias de Daniel Baz dos Santos, falar sobre a
degustação de bebidas (aqui no caso, de café), sobre as discussões que ocorrem em
torno de uma mesa, sobre o cartunesco da mesura de Daisy quando é apresentada
na chegada à cabana. Como eu sei que ele o fará, silencio.
Gostei! Tava procurando algo mais consistente pra ler porque percebi a retomada da questão da escravidão, ou do seu legado, já presente em Django livre. Queria poder refletir melhor sobre esse quadro montado pelo Tarantino acerca da América, que tanto diz de nós todos. Só achava coisas triviais sobre a violência, como se esta fosse recurso de estilo avulso... Obrigada!
ResponderExcluirOi, Luciana. Ficamos muito satisfeitos que tenhas gostado do texto. Gostaríamos de agradecer pela leitura e te convidar para ficar de olho nas novas críticas que estão saindo. Abração!
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