domingo, 24 de maio de 2015

Da série à espera de "Hateful Eight"




Mauro Nicola Póvoas

Vol. 1 – Vi, logo me deleitei


É na comparação com outros filmes que Kill Bill Vol. 1 aposta suas fichas, já que a nova película[1] de Quentin Tarantino é uma homenagem aos spaghetti-westerns, gênero que explodiu na Itália em meados nos anos 60, e aos filmes Z de artes marciais made in Hong Kong, cujo expoente foram os poucos e hoje clássicos filmes que Bruce Lee realizou; em suma, a todo o mais belo lixo que o cinema já conseguiu regurgitar. Estranho: aquele espectador que vai ver e se maravilha com o filme de Tarantino provavelmente torça o nariz para (ou mesmo nunca tenho ouvido falar de) O dólar furado ou Operação Dragão. Claro que a assinatura de Tarantino vale mais do que o conteúdo.
No entanto, se é uma homenagem a um tipo de filme que a maioria abomina ou despreza, por que a empatia? Talvez porque seja paródico? Mas paródico do quê? Dos filmes supracitados não é, pois Tarantino não cansa, nas entrevistas de divulgação do filme, de mostrar seu amor por esses filmes. Talvez ele seja, isso sim, hiperbólico: eleva ao cubo o exagero, o clima trágico e o nonsense que estavam lá nos originais.



Agora, qual a intenção do diretor estadunidense com isso? Dar status a categorias eternamente relegadas do panteão da “Sétima Arte”? Se sim, aí teríamos um “estilizar para se tornar arte”. Neste momento, uma metáfora talvez defina com mais exatidão o que seria o filme: Kill Bill é como uma bolha de sabão, estrutural e formalmente perfeito e belo, mas de conteúdo pífio, para não dizer vazio[2]. Esteticismo é perigoso sim, e o uso da comparação metafórica da bolha contém já uma depreciação a esse efeito físico, o da ausência de conteúdo, falta grave para analistas escolados, formados em Letras, Comunicação Social, História, Sociologia e cursos afins, ou autodidatas com vivência de leitura e frequência em salas de cinema.
Se a perfeição absoluta beira o vazio, como fica o espectador ao gostar de um filme exatamente por que ele é estilizado? A primeira, e talvez única saída, é procurar uma proposição no filme. Existe? E se sim, qual é? Ela atinge seu objetivo, ao final?
Vamos começar do princípio. Peguemos dois apologistas da violência em suas obras, e dos quais ninguém discute a importância, seja para a história do cinema americano, Sam Peckinpah, seja para a história da literatura brasileira, Rubem Fonseca.



A violência estilizada de Peckinpah parece emular a decadência dos EUA, já que seus faroestes perdem a epicidade inerente em muitos dos filmes desse gênero clássico, no momento em que coloca heróis crepusculares (degradados, na terminologia luckasiana) num mundo que não é o mais deles, como acontece em Meu ódio será sua herança[3]; já o pai de família americana vivido por Dustin Hoffman em Sob o domínio do medo demonstra que nem dentro dos EUA se têm mais tranquilidade e sossego (tese que o 11 de Setembro ratifica). Peckinpah mostra o pesadelo por detrás do sonho do american way of life. Já Rubem Fonseca, nos contos de Feliz Ano Novo e O cobrador, dois de seus melhores livros, claramente mostra o caos social que o Brasil vivia na época da ditadura militar, a qual era vendida pelo governo como apaziguadora e expurgadora dos males de que a sociedade brasileira estava contaminada. De novo, a arte como denunciadora de um sonho/mito construído pela direita. Assim, é claro que a esquerda exultará com estes exemplos, que servem à sua doutrina. Agora, se formos tentar achar quais são as teses por detrás de Kill Bill, as três primeiras podem provocar arrepios em espinhas “de esquerda”, pois as premissas seriam:
1)     a violência resolve tudo, sem que seja necessário o dialogo ou a mediação;
2)     o sentimento de vingança move o mundo;
3)     há uma clara postura contra o multiculturalismo, afinal, uma norte-americana, supercapaz e competente, extermina orientais, negros e quaisquer outras etnias que se interponham em seu caminho – em suma: não se meta com um americano!! Outro detalhe, o big boss, Bill, que mal e mal aparece no primeiro volume, o grande comandante de todos, é americano. Por outro lado, todavia, o poder da espada é concedido por um japonês a uns poucos eleitos americanos, entre eles Bill e a Mamba Negra;
4)     o filme mostra a força da mulher na sociedade moderna.
Essas teses, entretanto, explicam algo, ou mesmo se sustentam? Melhor, importam? Não é mais possível, àqueles que se pautam pelo academicismo, ver o filme e somente se deleitar, na fruição pura? Ou essa postura denuncia alienação?
Recursos os mais modernos para a fruição descompromissada o filme apresenta às mancheias: cenas excitantes com a tela dividida ao meio; trilha sonora potente e contagiante, de uma importância fulcral no delineamento da história, em especial nas doses de injeção e retirada de ânimo do espectador; jogos temporais com idas e vindas; efeitos especiais inusitados e inverossímeis, como quando o sangue jorra como de um chafariz dos membros amputados; um episódio todo em desenho animado; a cena estapafúrdia e antológica do restaurante japonês, que termina numa imagem digna de um quadro de H. Bosch, quase congelada, a não ser por gemidos e movimentos de troncos decepados.



Nesse sentido, o filme é belo, é cinema puro, puro visual, cinematograficamente bem filmado, plástica e musicalmente perfeito, em que tudo – a vingança, as brigas, a filosofia barata, as roupas, as falas, o sangue – é estilizado. Arte pode ser festa para os sentidos, também... Ou a hermenêutica condenará ao inferno todos aqueles que ousarem não interpretar uma obra?
Pode-se argumentar em torno da excessiva violência do filme, mas como não fugir da violência se o tema é vingança? Méritos para o Tarantino-roteirista, que faz um lindo bolo, com cobertura de glacê, de três horas e meia, nos dois volumes, com um fiapo de história: noiva, ex-integrante de grupo de extermínio, quer se vingar do mandante e dos executores de chacina no dia de seu casamento.
Pode estar aí parte do fascínio da obra, então. No momento em que ela mexe com algo intrinsecamente humano, vingança, sentimento ao qual todos as pessoas estão ligadas, ou possuem em seu íntimo, mas que não exteriorizamos facilmente. O filme serve como válvula de escape catártica para nos purificarmos de sentimentos vis, violentos e vingativos? Mesmo que essa catarse se dê aos borbotões (ou, pensando melhor, exatamente por causa disso), com litros e litros de sangue falso, saímos aliviados.



Tarantino sempre gostou dos filmes B, tanto que, em suas produções anteriores, ele homenageou, de uma forma ou de outra, os filmes policiais (gênero B por excelência) nas suas mais diversas variantes: detetives, pulps, gangsters, blaxploitation etc. Gêneros e subgêneros tipicamente americanos, o diretor pôde, sem maiores preocupações, se circunscrever em terreno conhecido. Ao adentrar em gêneros que encontram seus maiores nichos em países outros que não a América, dúvidas pairam, e o que nunca tinha sido perguntado, emerge: será Tarantino um reacionário ou, ao menos, um alienado? A ausência de questionamentos político-sociais em seus filmes apontaria para essa conclusão? A falta de uma maior conversa com o Outro aventaria essa possibilidade?[4]

Vol. 2 – Para quem gosta de cinema


Há pouco estreada nas telas brasileiras, a continuação da saga de Black Mamba (ou Arlene Plimpton, ou Beatrix Kiddo), desconcerta, tomando um rumo oposto daquele trilhado pelo primeiro volume. A busca da vingança continua, mas agora recheada mais com os famosos diálogos caudalosos de Tarantino e menos com pancadarias acrobáticas. A história é mais climática, menos exuberante. A própria trilha sonora perde em importância: um exemplo pode ser visto na música de abertura deste segundo volume, bem menos significativa que o grande início do primeiro, com a soturna “Bang bang (My baby shot me down)”, de Nancy Sinatra, que dá o norte para todo filme, e que comparece na segunda parte apenas como música incidental.
Na verdade, Kill Bill, visto em conjunto, é uma grande história de amor. Num primeiro momento, é por amor à sua filha que Beatrix renuncia à vida de crimes. Depois, é também por amor que Bill desencadeia sua vingança brutal, exagerada, emotiva. Sentindo-se traído e enciumado, não suporta a fuga de sua comandada dileta, ao saber-se grávida, não titubeando em exterminar não só a moça, como a todos que a rodeavam.



Nesse segundo tomo do filme, ainda, acentua-se, maravilhosamente a inverossimilhança. A história é inverossímil e é boa!!, contrariando um dos pilares aristotélicos. Será que a teoria do Estagirita já não dá conta da análise das narrativas do século XXI? Talvez não. Ora, as novelas, mesmo sendo “realistas”, são insuportáveis pela sua inverossimilhança – esse é o argumento dos seus críticos. Nesse sentido, o trunfo dos críticos das novelas da TV torna-se o suplício do analista do filme de Tarantino, pois toda a película não faz muito sentido (por exemplo, de onde Kiddo tira o dinheiro para suas viagens?; por que ela não matou de uma vez a personagem caolha de Daryl Hannah?; como e quando a filha dela foi parida?), mas o que importa? A verossimilhança parece ser um item que não mais é obrigatório para que se tenha um bom filme, um bom romance, uma boa narrativa, enfim.
Enfim. É um filme para quem gosta de filmes, como algumas das cenas de Kill Bill Vol. 2 deixam entrever.



Quantas vezes já vimos, em Hitchcock, aquele velho truque em que o ator somente finge estar dirigindo, com a paisagem passando ao fundo?
Quantas vezes já vimos, na tela grande, depois reprisados nas Sessões da Tarde e nos Supercines, aquele senhor que habla español, no fio da navalha entre o encantador e o canalha?
E aquela espetaculosa e improvável saída do túmulo?
E o deliciosamente cruel, até o limite do caricatural, Pai Mei e as suas técnicas improváveis, inclusive a do Cinco Toques que Explodem o Coração?
O filme é todo exagerado, mas é por isso que gostamos dele; o filme é todo ambíguo, entre a seriedade e o humor; entre cenas sanguinolentas e cenas afetuosas entre mãe e filha; entre o amor e o ódio. Uma grande sátira ou uma não menos grande homenagem?



Ao fim, na fala de Bill sobre o Super-Homem, a chave para se entender (ou não) tudo: Beatrix Kiddo é como se fosse uma personagem de histórias em quadrinhos (subvertida, é claro, pois ela é “do mal”). Vista como uma super-heroína de HQ, Beatrix livra-se do problema da verossimilhança, e pode trilhar o caminho do absurdo sem problemas. Por isso, também, ela é invencível, e por isso torcemos por ela, e por isso toda a mitologia em torno dela.
E o filme tem que terminar num happy end, com Beatrix agora já do lado “do bem”, é claro, pois o encontro com sua filha inaugura uma fase em que mortes, retalhamentos e espadas de Hatori Hanzo ficarão para sempre longe. Ou, novamente, não.
Aguardemos Kill Bill Vol. 3, que um dia será lançado.



[1] Textos escritos quando do lançamento dos filmes, em 2003 e 2004. Os filmes foram vistos duas vezes cada, em cinemas de Porto Alegre. O deleite só fez crescer, na segunda vez.
[2] José Luís Fornos, em mensagem eletrônica enviada em 10 maio 2004, afirma que “quanto mais puramente as obras de arte aspiram à ideia manifesta de arte tanto mais precária se torna a relação das obras de arte ao seu outro, relação que por seu turno, é exigida no conceito de obra. Mas ela só é conservável à custa de uma consciência pré-crítica, de uma ingenuidade desesperada. é evidente que as maiores obras não são as mais puras, mas as que costumam conter um excedente extra-artístico e, sobretudo, um elemento material intacto, que pesa na sua composição imanente. O momento histórico é constituído nas obras de arte; as obras autênticas são as que se entregam sem reservas ao conteúdo material histórico da sua época e sem pretensão sobre ela. Nesse sentido, como observa Adorno, onde a arte é experimentada apenas esteticamente ela deixa de ser experimentada mesmo esteticamente”. (Grifo em itálico do original).
[3] Será Tarantino fã dos filmes peckinpahnianos? A cena da matança final em Meu ódio... assemelha-se muito à cena da carnificina de Kill Bill, seja na violência, seja na disposição quase suicida dos protagonistas de ambos os filmes de resolverem os seus problemas “na porrada”, já que há um código de honra muito particular a ser preservado (código de honra é algo bastante presente em filme de artes marciais e em bangue-bangues). Sobre os protagonistas dos dois filmes: destaque para o fato de que os personagens principais serem “vilões”, e não “mocinhos” de conduta ilibada.
[4] Bobagem. Tarantino não é conservador. Leiam-se as suas declarações, como presidente do júri do 57º Festival de Cinema de Cannes, ao dar o grande prêmio a Fahrenheit 9/11, de Michael Moore: “Não foi o conteúdo político, apesar de estar de acordo com ele, que deu a Palma de Ouro a Fahrenheit 9/11, filme anti-Bush que não pode ser apresentado como simples documentário, pois é muito mais”. Correio do Povo, 24 maio 2004, p. 20.

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