Daniel Baz dos Santos
Ida
é uma história de busca exterior e interior, como muitas que já foram feitas,
flertando com o gênero road movie, mesmo
que nunca chegue a abraçá-lo totalmente. O que permite, contudo, que o filme se
destaque da maré de opções com tramas semelhantes é a precisão do diretor e
roteirista Pawel Pawlikowski (do badalado Last
resort) nas escolhas temáticas e estilísticas de sua história, o que poderia
justificar a vitória na categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar em 2015.
O filme conta, em idos da década de 60, a história de Anna. Antes de prestar os
votos de castidade para ingressar em um convento, a jovem parte para conhecer a
tia Wanda Cruz. Esta revela a origem judia da menina e, após isso, as duas familiares
saem em busca da verdade por trás do sumiço dos pais da garota, assassinados
pelos nazistas, permitindo que a trajetória pessoal de ambas comente a história
recente da Polônia após a Segunda Guerra Mundial. Em paralelo, o convívio com a
tia colocará as crenças da menina em xeque, problematizando a dimensão da fé no
mundo secularizado pelo qual pretende transitar.
Pawlikowski marca a
direção de Ida com algumas
constantes. A primeira delas é da ordem do movimento de câmera, ou melhor, da
falta dele. À exceção da última cena (interpretada posteriormente) não há
nenhuma panorâmica ou travelling em
todo o filme. Tudo ocorre dentro do plano fixo, enquanto as personagens se
movem (muito pouco, por sinal) no interior do quadro estático. Como a câmera
nunca se movimenta, o espaço “dentro do campo” se torna extremamente
autoritário, decidindo o que podemos ver ou não, sem oscilações ou alternativas.
De qualquer forma, o cineasta aponta para os espaços contíguos ao que é
mostrado, já que muitos de seus enquadramentos envolvem ambientes incompletos
que sinalizam para seu inacabamento, com especial destaque para as estradas,
sem começo nem fim, que ambientam muitos dos pontos da trama.
Além disso, a
composição do cenário é extremamente sóbria, com pouquíssimos adereços ou
apetrechos, passando por paredes lisas, sem marcas ou rugas, campos vastos sem
árvores, e, quando elas existem, estão limpas de folhas. Os lençóis em certo
varal são impecavelmente brancos, e só. Quase nada parece revelar as ruínas
históricas que contextualizam o filme. Quando as protagonistas interagem com um
lugar um pouco mais enfeitado, o salão onde os músicos tocam, é sintomático que
Pawlikowski mostre homens colocando as lâmpadas que adornarão o lugar,
sinalizando para a artificialidade do gesto. Seguindo este caminho, as roupas
da protagonista também estão livres de adereços e a cor do lenço que cobre seus
cabelos (representativo de sua submissão ao dogma religioso) rima muitas vezes
com o tom de cinza dos fundos da cena. Da mesma forma que o espaço, o rosto de
Anna também é austero, já que Agata Trzebuchowska compõe sua personagem com
pouquíssimas expressões faciais, sendo cômico o comentário da tia, ao dizer em
certo ponto que ela ganha uma cova a mais no rosto quando sorri. Outro ponto
preciso da interpretação da atriz e da concepção de sua personagem refere-se à
cena na qual ela deixa escapar o riso durante a alimentação das freiras,
refeição geralmente silenciosa e rígida, atitude simbólica da transgressão que irá
empreender.
As economias presentes
em todos os aspectos da obra são coerentes com a ausência de firulas de câmera
já mencionada e está em dia também com o roteiro enxuto, sustentado por
diálogos diretos, curtos e repletos de pausas, muitas vezes mais significativas
do que aquilo que é dito. Entretanto, na rigidez dos cenários se destaca um
elemento particular: as escadas. Em um filme que versa sobre a relação entre a
matéria das coisas terrenas e a espiritualidade referente aos valores transcendentais,
é sintomático que haja degraus em muitos dos ambientes nos quais as personagens
transitam, inserindo de forma constante a verticalização do mundo e dos seus
valores: na primeira cena, na sala da madre superiora, na casa da tia, fora do
quarto do hotel... Esta última, presente após a briga da menina com Wanda, é
ainda mais simbólica por tratar-se de um modelo espiralado, portanto, representativo
do percurso da personagem.
O jogo entre as
questões do espírito e aquelas que concernem ao mundo material é tratado em
termos formais também na composição dos enquadramentos. Geralmente, as
personagens – Anna, notadamente – são situadas no terço inferior da tela, como
se fossem obrigadas a se aproximar das coisas de baixo, contraponto irônico à
fé da protagonista, sugerindo o abandono da religião que irá se processar. E é
angustiante que o diretor opte pelo superior corporal, na mesma medida em que
decide localizá-lo no terreno inferior do campo. Esta decisão se soma com
outras também precisas, ilustradas pelo tratamento já da primeira cena, no qual
um grupo de freiras põe uma imagem de Cristo em pé, situação focalizada à distância
pela câmera que parece não querer se comprometer com a agenda litúrgica. Mais
do que isso, quando Anna deixa a instituição, vemos o espaço à distância e
opaco pela neblina, em uma decisão fotográfica que sinaliza para a sua fragilidade
e esmaecimento. Por fim, a escolha de enquadrar as personagens na camada na
parte de baixo do quadro se junta à atitude de recortar o corpo, geralmente,
focalizando apenas o rosto dos sujeitos representados (a primeira cena do filme
já é construída neste estilo).
A corporalidade é,
nesse sentido, um fenômeno parcial em Ida
e assim é experimentada. Parece ser a forma que o diretor encontra de não
ser unilateral, de não escolher um lado, sugerindo, enfim, que todo projeto do
homem é um fenômeno inacabado e parcial, o que enfatiza a fragilidade de sua
imagem diante de um cinza que se apodera do chão e do céu. Certas decisões também
se situam neste esforço de contrapor o contexto aos dilemas humanos. Talvez as
mais significativas sejam aquelas que envolvem Anna entregue aos seus desejos após
conhecer o músico. Num primeiro momento, ela o beija e o diretor opta por
manter boa parte da tela escura, remetendo aos closes do cinema mudo, quando somente
um extrato da imagem é captado pela fotografia. Por fim, quando se relacionam
sexualmente, a câmera se mantém estática no rosto da protagonista, indiferente
à totalidade do ato sexual, o que atenua, de certa forma, qualquer sentido
libertador que a cena poderia ter.
Falando ainda no
aspecto fotográfico, resta comentar a escolha de Pawlikowski pelo preto e
branco. Por um lado, o mais óbvio, a opção explora a diminuição das emoções
(ainda que muitos teóricos já tenham mostrado que a paleta monocromática deste
tipo de composição também pode estar carregada de sentimentos), ao tratar com a
aparente frieza da monocromia um assunto fundamentalmente emotivo, extraindo
daí mais conexão com o tema. Basta pensar na Guernica, de Picasso, também composta no preto e branco, o que
permite que cromatizemos a tragédia através da imaginação, já que, em geral,
relacionamos os objetos representados com a memória que temos deles em estado
empírico. Isso permite que cada um, assim desejando, preencha o quadro com suas
próprias cores, em um movimento de empatia e interesse adicional para a
dramaticidade do filme. Sendo assim, os dois tons podem reconectar público e
sentido, ao contrário do que inicialmente suporíamos.
Contudo, por outro
lado, o caso de Ida é ainda mais
complexo, pois o preto e branco flerta também com nossa memória histórica a
respeito do Holocausto, e, obviamente, com grandes obras que abordaram o tema. Sempre
vêm à mente A lista de Schindler, de
Steven Spielberg, Noite e neblina, de
Resnais, e Maus, de Art Spielgman, ambas
responsáveis por utilizar as escalas de cinza para retratar o período. Sendo
assim, mais do que coesão e empatia ao abordar o trauma, Pawlikowski está
sinalizando para o cânone imaginário que a cultura estabeleceu a respeito da
matéria ficcionalizada. Se somarmos isso ao tratamento rigoroso dado aos demais
componentes fílmicos, pode-se inferir que tal rigidez e economia sejam também
um comentário à dizimação dos poloneses após a guerra (um quinto da população,
aproximadamente três milhões de judeus, foi assassinado).
Estamos, portanto,
diante de uma obra que expõe e comenta, fingindo que não participa. Aqui está a
maior angústia efetivada pelas decisões composicionais do diretor, o repertório
de técnicas ocupadas de relatar a história de Anna termina também por se
mostrar uma forma parcial de acompanhá-la. Talvez por isso a última cena
transgrida a poética instaurada pelo próprio filme, obrigando-nos a acompanhar
a heroína decidida, caminhando no meio de uma estrada, vindo na nossa direção,
enquanto automóveis seguem o percurso oposto, captada pela câmera finalmente
liberta, solta em um travelling que
significa, em um mesmo gesto existencialista, o fracasso da completude e o
sucesso da abertura, ou a derrota da narrativa enfatizando o sucesso do que foi
narrado.
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