Daniel Baz dos Santos
“A ciência da abeia, da aranha e a minha
muita gente desconhece”
- João do Vale/Luiz Vieira
“Não sei o que é
mais frustrante:
se é não
realizar nenhum sonho,
ou realizar
todos eles.”
- Cazé
(personagem de Júlio Andrade)
Quando “Entre nós” começa, nos deparamos
com Felipe, o personagem de Caio Blat, caminhando em um ambiente campesino,
cercado de montanhas cobertas por vegetação. O sujeito está só, reflexivo e
apequenado pelo mundo que o cerca. A cena é contrastada pela sequência seguinte,
na qual vemos o personagem acompanhado do grupo de jovens que irá compor com
ele a história do filme. Todos interagem felizes, enquanto lemos o nome dos
atores nos créditos que, em um procedimento metalinguístico e emotivo, também
são conhecidos de muitos anos.
Essa escolha inicial de edição do
diretor Paulo Morelli, que também assina o roteiro, elabora a esfera
inferencial e sintética da montagem, apontada e defendida inicialmente por Eisenstein,
ao levar-nos a associar dois momentos antitéticos, mas inesperadamente, contíguos.
Primeiro, a solidão, depois, a comunhão. Dois valores que serão explorados em
vários níveis ao longo de todo o filme e aparecem resumidos na sua montagem
inicial. Além disso, as duas sequências, quando unidas pela mente do
espectador, estabelecem uma contradição, cujo produto ainda é difícil de
imaginar, e esses vazios, associados àquilo que as personagens escondem e o pouco
que podemos saber a respeito delas, também será central no andamento da obra.
A história relata, inicialmente, este
dia animado de 1992, quando o grupo de amigos aspirantes a escritores decide
enterrar debaixo de uma pedra no terreno de Silvana (personagem de Maria
Ribeiro), a dona do lugar, papéis com escritos a respeito de suas expectativas
para o futuro. Neste mesmo dia, Rafa (interpretado por Lee Taylor) mostra a
Felipe o final do romance que vinha escrevendo, enquanto ambos se dirigem para
a cidade em busca de mais bebidas. Após apreciar o desfecho do texto do amigo,
Felipe confessa estar diante de uma obra-prima para, assim que rumam pela
estrada, ser o único sobrevivente do acidente automobilístico que mata Rafa.
Em 2002, o grupo se encontra para ler os
escritos enterrados e o conteúdo do filme ocupa-se desta dinâmica em torno do
reencontro, das mudanças ocorridas devido à passagem do tempo e dos conflitos
vividos entre eles e por eles. Acompanhamos a chegada do personagem de Caio
Blat, um romancista reconhecido após publicar o primeiro livro, considerado uma
obra-prima. Logo saberemos o porquê desta ênfase no personagem, cuja imagem é filmada,
mais uma vez, em paralelo com certos planos que mostram a paisagem que circunda
o local. Os demais amigos começam a chegar e notamos, como o primeiro encontro deles
já demonstrava, que a relação entre o grupo é essencialmente emocional. A
câmera e o roteiro se esforçaram para captar este aspecto da trama. Hugo
Munsterberg no texto “As emoções” defende que o extrato emotivo, das muitas possibilidades
artísticas, é o mais forte no cinema. Acrescenta
ainda que a primeira ferramenta de captação do sentimento humano, depois
recuperada em certas passagens de Deleuze, é o close, muito mais eficaz, segundo
o teórico, que os binóculos dos teatros e das óperas, permitindo que sintamos o
repertório dos gestos faciais que compõe os conflitos que o sujeito traz dentro
de si.
Este artifício é amplamente utilizado
nas sequências de “Entre nós”, servindo também para recortar os personagens de
sua paisagem, estimulando a intimidade entre eles. Partindo disso, o teórico
explica que toda imagem possui um aspecto material (que ele entende pelo
conteúdo, emocional, no caso) e outro formal, ou seja, o estilo empregado na
expressão da matéria. Paulo Morelli se diverte com as diferenças de ênfase
entre um polo e outro, especialmente pelo uso dos movimentos de câmera.
Munsterberg já terminava o texto citado anteriormente sugerindo que o futuro da
comunicação emocional do cinema repousaria no desenvolvimento das técnicas de
movimento de câmera, sendo necessário observar algumas passagens de “Entre nós”
para evidenciar o papel central delas na construção do filme.
Quando os amigos se reencontram, Felipe
está casado com Lúcia (Carolina Dieckman), antes namorada de Gus (Paulo Vilhena).
O ambiente no qual eles se reveem é recortado pelas vigas do chalé. Uma delas
cobre temporariamente o personagem de Caio Blat, indício de que a ambientação
trabalha na representação de seu caráter obscuro. Além disso, todo o ritual de
encontro dos amigos (à exceção de Gus que ainda não chegou) se dá neste espaço,
com os pilares de madeira alienando uns dos outros enquanto se abraçam, numa forma
de mostrar que os vínculos já não são mais tão fortes e as relações não são tão
naturais. Em contrapartida, não há lugar nítido para a focalização, já que a
câmera se esforça o tempo inteiro para encontrar o lugar apropriado enquanto os
vários personagens conversam.
O uso de itens verticais que recortam o
cenário e obstruem a visão pode ser visto em outras situações, com destaque
para o trecho quando Silvana e Felipe conversam sobre a inspiração do primeiro livro
deste, enquanto outra tora grossa de madeira separa ambos. Da mesma forma, depois
da primeira cena com Lúcia, à noite, quando Felipe toca no assunto do livro de
Rafa (em uma referência clara ao coração delator de Poe), ele anda por meio das
árvores, mostrando que o recurso nada tem de arbitrário. Finalmente, quando Gus
fala que sua vida não vai bem, conversando com Drica, os pilares que seguram a
estrutura são substituídos aos poucos pelas árvores da região, por onde eles caminham
enquanto conversam.
Muitas vezes essa refração do foco, que
sinaliza para a própria representação opaca das coisas, está presente nas cenas
em que não vemos as personagens, mas seus frágeis reflexos em determinadas
superfícies, com especial atenção na cena quando os amigos tiram a última foto
juntos. Neste momento, nós vemos seus reflexos na janela, indicando que eles
já são uma representação pálida e enviesada de si mesmos. A passagem de uma imagem
nítida para outra desfocada é um tipo refinado de focalização externa, na qual
a ocularização nos entrega mais do que as personagens podem saber, o que
enfatiza a maneira distorcida na qual os observamos, algo fundamental para o
desfecho do filme. No tempo presente, por seu turno, a fotografia tirada pelos
amigos é vista através da janela, observada por Felipe, deixando claro que a
primeira decisão perceptiva também não foi aleatória.
A natureza fantasmática da imagem do
grupo – entre
aquilo que são, o que foram e o que fingem ser – pode ser vista em outros
momentos. Ao passarem por uma quadra de tênis, feita no terreno de Silvana
– construída
depois do último encontro dos amigos, mas ainda assim já abandonada, o que é
revelador do caráter catastrófico e indócil do tempo – Casé (Júlio
Andrade) e Drica (Martha Nowill) simulam que jogam com raquetes invisíveis,
imitando os sons dos lances com a boca. Esta atitude de simular algo ausente é simbólica
da dinâmica do grupo, que tenta, em certa medida, fingir uma relação que também
não é real. Outra prova disso, entregue desta vez pelo roteiro, é o fato de Gus
chegar rebocado na casa onde se encontrarão, explorando o desconforto de um
personagem que, possivelmente, não queria estar ali. Outros recursos podem
revelar aspectos dos personagens que só conheceremos em momento mais adiantado
do filme, como quando Felipe esbraveja, ao observar a foto que ilustra a orelha
de seu livro: “Cara de picareta”, “cara de moleque”.
Os personagens de “Entre nós” se
relacionam em situações de banquete, onde todos falam e opinam sobre vários assuntos.
Muito desta dinâmica remonta a mestres do diálogo fílmico, com atenção para
Almodóvar, Cassavetes e, sobretudo, Robert Altman. Introjetar o alimento é
simbólico da descida em profundidade dentro de si. Conforme interagem, se
revela também o mistério maior do filme: o livro de sucesso publicado por Felipe
fora escrito na verdade por Rafa. A câmera, na linha do que Munsterberg
imaginou, tenta reconectar esses seres degradados, distantes dos sentidos
autênticos do mundo, e este esforço fica evidente na maneira como se aborda a relação
dos convivas dentro da casa, no primeiro jantar. A câmera move-se horizontalmente
pelo espaço, na tentativa de se integrar o máximo possível aos diálogos e
situações. Ela é, portanto, meio livre, meio comprometida, quebrando,
obviamente, a unidade de ponto de vista a todo o momento (como os já
tradicionais travellings ao redor da
mesa cheia de indivíduos, utilizados por muitos diretores), motivada pelas várias
personalidades que deve captar, acreditando, assim, no deslocamento espacial da câmera como afixador e hierarquizador de
valores, a exemplo da cena depois do jogo de futebol, quando ela segue os três
protagonistas homens até que eles se reencontrem com as três personagens
femininas principais. É justamente pelo sentimento de integração e
desintegração com o espaço, que a câmera também vivencia, que não há
praticamente nenhuma “panorâmica puxada” ao longo do filme.
A
multiplicidade de valores tematizados pode se impor por meio da montagem
paralela, algo presente no trecho em que a “cafona” (como diz Silvana) canção
“Total eclipse of the heart” é executada em CD, enquanto Cazé e Gus discutem o
que é alta culinária e carnes nobres. Nessa cena, a câmera oscila entre
perseguir o personagem de Paulo Vilhena e de Martha Nowill (que dançam), a
bandeja de bruschetta preparada por Cazé, ou o personagem de Caio Blat se
encaminhando para desligar o rádio. Ainda na mesma sequência, Silvana e Cazé
discutem se a década de 80 e 90 foi a “merda” que o segundo acha, ou o ambiente
no qual as pessoas se expunham, segundo a amiga. A discussão termina com Felipe
defendendo que para fazer arte não é necessário viver seu conteúdo (“Para
escrever um policial terei que matar uma pessoa?”, diz o sujeito) e com o
desastre da carne nobre, queimada por Gus que se distraiu enquanto dançava.
Esta alternância de sentimentos , opiniões e objetivos estabelece várias
frequências em cena, difíceis de serem dinamizadas pela focalização, já que
muitas narrativas e vozes são contemporâneas no quadro. Além disso, no plano
simbólico, o desconforto de Gus ao servir a carne desastrosa e maquiada para os
amigos, sintetiza mais uma vez incômodo que todos sentem de terem se tornado
aquilo que não planejavam.
Esta oscilação de ângulos e da indefinição
sensível do que é central e do que é lateral para câmera e para os personagens atinge
o ponto culminante mais ao fim da obra. Depois que Silvana descobre o plágio de
Felipe, este tenta possuir a amiga, por quem ainda é apaixonado, no mesmo lugar
onde Rafa salvara um pássaro em 1992 diante dos dois. Silvana segura o “seu”
livro nas mãos. Observamos a foto do autor jovem em primeiro plano, enquanto
sua versão deturpada do presente participa de uma de suas cenas mais patéticas.
Albert Laffey, um dos pioneiros na teoria cinematográfica, já explicou que a
câmera é um artefato paradoxal, pois insere o “eu” na narrativa (nosso ponto de
vista) como forma de assimilação perceptiva, mas ao fazer isso impede a
totalidade da identificação simbólica, já que é sempre um recorte. A cena
envolvendo o personagem de Caio Blat leva esta condição ao limite do perverso,
pois sabemos que não deveríamos estar ali, mas, só porque estamos podemos
reconhecer o nosso lugar (e posicionamento) em relação ao conflito decisivo do
filme.
Dentro deste enredo, é angustiante que
os cortes de cena não sejam nunca seguidos de mudanças espaciais
significativas. Tudo se passa no mesmo terreno, o que fortalece o “aqui mesmo”
(previsto por André Gaudreault e François Jost) do discurso cinematográfico, algo
irônico já que ele sempre elabora seus conteúdos no presente, mesmo quando
passados. Todas as disjunções espaciais provocadas pelos cortes são, por sua
vez, “proximais”, o que salienta a comunicação vetorizada dos seres (entramos
em quartos, na sauna, na piscina atrás deles...).
A incomunicabilidade revelada na
dinâmica do grupo (ao fim, alguns deles nem suspeitam do segredo de Felipe), a
ausência de eixos para a focalização, o uso de elementos do espaço para alienar
uns personagens dos outros, criando outros enquadramentos dentro do quadro
geral, tudo isso pode ser contextualizado por certas constantes temáticas do
filme e que devem ser observadas. Começamos pela tipologia dos protagonistas.
Todos de classe média urbana, obrigados a resolver seus problemas em um ambiente
rural. Em certo momento, o conflito campo/cidade se estabelece, a exemplo do
caseiro que cobiça Drica (e a perícia dos “peões” da casa no futebol,
massacrando o trio masculino principal). Na mesma cena, possivelmente para
enfatizar o sentido anterior, Drica brinca que Silvana é “senhora do campo” e
fabula sonhos eróticos no qual ela transa com o jovem caseiro. A mentalidade da
vida rural também é metaforizada no pássaro que Rafa salva, símbolo para a
liberdade que tinham (é o personagem de Lee Taylor também quem abraça uma
árvore, ainda no início da película), e no cascudo de patas para o ar que Felipe
se recusa a ajudar, metáfora para a estagnação de suas vidas, como parece
sugerir a cena final.
Nesse sentido, por trás do filme se
repensa o caráter dilacerado de nosso progresso, feito às pressas após a colonização
(Silvana comenta que a prática do topless
ainda não é bem visto no Brasil, acostumada que está com costumes europeus)
e impulsionador de uma cultura eternamente dependente da natureza (em seus
principais símbolos), construída no hibridismo da alta cultura com a baixa.
Talvez por isso sua trilha sonora principal seja “Na asa do vento” (música que
Cazé executa duas vezes ao violão, acompanhado por todos, ainda que, na segunda
vez, ela seja interrompida pela trilha incidental de mistério), popular sucesso
de João do Vale, mas apresentada aqui na versão vanguardista de Caetano Veloso,
na época do polêmico disco “Joia”. Ora, a instabilidade emocional do grupo é
contraparte de nossa instabilidade histórica e cultural. Não por acaso, no
último jantar na casa, Cazé e Drica puxam a canção tema da vitória de Lula nas
eleições de 2002, ao mesmo tempo em que discutem sobre quem transaria com quem,
a copa de 98, o PT e a salvação do país, e onde estavam na tragédia do onze de
Setembro (Drica, emblematicamente, diz ter visto tudo em meio à alucinação após
uma endoscopia, o que atesta a forma parcial e lacunar com que a história se
relaciona com cada um deles). Logo o tópico histórico se torna pessoal “Quer
dizer que você sujou a mão para chegar onde chegou?”, pergunta Felipe ao ouvir
Cazé dizer que ninguém ascende socialmente sem se corromper. Esta é a angústia
maior. A derrota dos sujeitos imersos no decorrer da história geral não
desacelera seu andamento teológico e unilateral. O resto é rastro.
Por causa disso, cabe ao filme conviver
com outro paradoxo, este próprio da linguagem cinematográfica, como já
apontaram Jost e Gaudreault :
Até mesmo quando
as palavras apresentam os eventos como já acontecidos no passado, o rolo das
imagens do filme só pode mostra-los no decorrer de sua realização: esse tipo de
contradição existe tanto na época do cinema mudo, quando a cartela conta um
fato já acontecido e a imagem mostra esse mesmo fato acontecendo, quanto no
cinema sonoro, notadamente com a utilização da voz over: certas vozes over
estão de fato no imperfectivo, e por essa qualidade coincidem com a própria
natureza da linguagem cinematográfica
A
unidade de espaço do filme só enfatiza a anormalidade do “aspecto indicativo”
no cinema. A maior tragédia dos personagens (em especial de Felipe) é viver
tudo em aspecto processual, inacabado e progressivo. Na segunda vez é farsa,
disse Marx. Mas a última imagem do filme é um close (carregado de emoção Munsterbergiana) no cascudo sendo posto
finalmente de pé pela mão amiga de Gus, referência à metamorfose, de Kafka,
citada por Rafa e Felipe no início do enredo. O bicho no início de sua
caminhada é o indício da catástrofe da história (dos personagens, do país) que
não para para olhar suas ruínas, pois o movimento é sua única salvação de si
mesmo, ainda que exclame: “Que puta saudade do que somos”.
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