segunda-feira, 3 de agosto de 2015

"Entre nós", de Pedro Morelli, e a saudade do que somos




Daniel Baz dos Santos



“A ciência da abeia, da aranha e a minha
muita gente desconhece”
- João do Vale/Luiz Vieira

“Não sei o que é mais frustrante:
se é não realizar nenhum sonho,
ou realizar todos eles.”
- Cazé (personagem de Júlio Andrade)


Quando “Entre nós” começa, nos deparamos com Felipe, o personagem de Caio Blat, caminhando em um ambiente campesino, cercado de montanhas cobertas por vegetação. O sujeito está só, reflexivo e apequenado pelo mundo que o cerca. A cena é contrastada pela sequência seguinte, na qual vemos o personagem acompanhado do grupo de jovens que irá compor com ele a história do filme. Todos interagem felizes, enquanto lemos o nome dos atores nos créditos que, em um procedimento metalinguístico e emotivo, também são conhecidos de muitos anos.
Essa escolha inicial de edição do diretor Paulo Morelli, que também assina o roteiro, elabora a esfera inferencial e sintética da montagem, apontada e defendida inicialmente por Eisenstein, ao levar-nos a associar dois momentos antitéticos, mas inesperadamente, contíguos. Primeiro, a solidão, depois, a comunhão. Dois valores que serão explorados em vários níveis ao longo de todo o filme e aparecem resumidos na sua montagem inicial. Além disso, as duas sequências, quando unidas pela mente do espectador, estabelecem uma contradição, cujo produto ainda é difícil de imaginar, e esses vazios, associados àquilo que as personagens escondem e o pouco que podemos saber a respeito delas, também será central no andamento da obra.




A história relata, inicialmente, este dia animado de 1992, quando o grupo de amigos aspirantes a escritores decide enterrar debaixo de uma pedra no terreno de Silvana (personagem de Maria Ribeiro), a dona do lugar, papéis com escritos a respeito de suas expectativas para o futuro. Neste mesmo dia, Rafa (interpretado por Lee Taylor) mostra a Felipe o final do romance que vinha escrevendo, enquanto ambos se dirigem para a cidade em busca de mais bebidas. Após apreciar o desfecho do texto do amigo, Felipe confessa estar diante de uma obra-prima para, assim que rumam pela estrada, ser o único sobrevivente do acidente automobilístico que mata Rafa.
Em 2002, o grupo se encontra para ler os escritos enterrados e o conteúdo do filme ocupa-se desta dinâmica em torno do reencontro, das mudanças ocorridas devido à passagem do tempo e dos conflitos vividos entre eles e por eles. Acompanhamos a chegada do personagem de Caio Blat, um romancista reconhecido após publicar o primeiro livro, considerado uma obra-prima. Logo saberemos o porquê desta ênfase no personagem, cuja imagem é filmada, mais uma vez, em paralelo com certos planos que mostram a paisagem que circunda o local. Os demais amigos começam a chegar e notamos, como o primeiro encontro deles já demonstrava, que a relação entre o grupo é essencialmente emocional. A câmera e o roteiro se esforçaram para captar este aspecto da trama. Hugo Munsterberg no texto “As emoções” defende que o extrato emotivo, das muitas possibilidades artísticas, é o mais forte no cinema.  Acrescenta ainda que a primeira ferramenta de captação do sentimento humano, depois recuperada em certas passagens de Deleuze, é o close, muito mais eficaz, segundo o teórico, que os binóculos dos teatros e das óperas, permitindo que sintamos o repertório dos gestos faciais que compõe os conflitos que o sujeito traz dentro de si. 




Este artifício é amplamente utilizado nas sequências de “Entre nós”, servindo também para recortar os personagens de sua paisagem, estimulando a intimidade entre eles. Partindo disso, o teórico explica que toda imagem possui um aspecto material (que ele entende pelo conteúdo, emocional, no caso) e outro formal, ou seja, o estilo empregado na expressão da matéria. Paulo Morelli se diverte com as diferenças de ênfase entre um polo e outro, especialmente pelo uso dos movimentos de câmera. Munsterberg já terminava o texto citado anteriormente sugerindo que o futuro da comunicação emocional do cinema repousaria no desenvolvimento das técnicas de movimento de câmera, sendo necessário observar algumas passagens de “Entre nós” para evidenciar o papel central delas na construção do filme.
Quando os amigos se reencontram, Felipe está casado com Lúcia (Carolina Dieckman), antes namorada de Gus (Paulo Vilhena). O ambiente no qual eles se reveem é recortado pelas vigas do chalé. Uma delas cobre temporariamente o personagem de Caio Blat, indício de que a ambientação trabalha na representação de seu caráter obscuro. Além disso, todo o ritual de encontro dos amigos (à exceção de Gus que ainda não chegou) se dá neste espaço, com os pilares de madeira alienando uns dos outros enquanto se abraçam, numa forma de mostrar que os vínculos já não são mais tão fortes e as relações não são tão naturais. Em contrapartida, não há lugar nítido para a focalização, já que a câmera se esforça o tempo inteiro para encontrar o lugar apropriado enquanto os vários personagens conversam. 




O uso de itens verticais que recortam o cenário e obstruem a visão pode ser visto em outras situações, com destaque para o trecho quando Silvana e Felipe conversam sobre a inspiração do primeiro livro deste, enquanto outra tora grossa de madeira separa ambos. Da mesma forma, depois da primeira cena com Lúcia, à noite, quando Felipe toca no assunto do livro de Rafa (em uma referência clara ao coração delator de Poe), ele anda por meio das árvores, mostrando que o recurso nada tem de arbitrário. Finalmente, quando Gus fala que sua vida não vai bem, conversando com Drica, os pilares que seguram a estrutura são substituídos aos poucos pelas árvores da região, por onde eles caminham enquanto conversam. 




Muitas vezes essa refração do foco, que sinaliza para a própria representação opaca das coisas, está presente nas cenas em que não vemos as personagens, mas seus frágeis reflexos em determinadas superfícies, com especial atenção na cena quando os amigos tiram a última foto juntos. Neste momento, nós vemos seus reflexos na janela, indicando que eles já são uma representação pálida e enviesada de si mesmos. A passagem de uma imagem nítida para outra desfocada é um tipo refinado de focalização externa, na qual a ocularização nos entrega mais do que as personagens podem saber, o que enfatiza a maneira distorcida na qual os observamos, algo fundamental para o desfecho do filme. No tempo presente, por seu turno, a fotografia tirada pelos amigos é vista através da janela, observada por Felipe, deixando claro que a primeira decisão perceptiva também não foi aleatória.



 
A natureza fantasmática da imagem do grupo entre aquilo que são, o que foram e o que fingem ser pode ser vista em outros momentos. Ao passarem por uma quadra de tênis, feita no terreno de Silvanaconstruída depois do último encontro dos amigos, mas ainda assim já abandonada, o que é revelador do caráter catastrófico e indócil do tempo Casé (Júlio Andrade) e Drica (Martha Nowill) simulam que jogam com raquetes invisíveis, imitando os sons dos lances com a boca. Esta atitude de simular algo ausente é simbólica da dinâmica do grupo, que tenta, em certa medida, fingir uma relação que também não é real. Outra prova disso, entregue desta vez pelo roteiro, é o fato de Gus chegar rebocado na casa onde se encontrarão, explorando o desconforto de um personagem que, possivelmente, não queria estar ali. Outros recursos podem revelar aspectos dos personagens que só conheceremos em momento mais adiantado do filme, como quando Felipe esbraveja, ao observar a foto que ilustra a orelha de seu livro: “Cara de picareta”, “cara de moleque”.
Os personagens de “Entre nós” se relacionam em situações de banquete, onde todos falam e opinam sobre vários assuntos. Muito desta dinâmica remonta a mestres do diálogo fílmico, com atenção para Almodóvar, Cassavetes e, sobretudo, Robert Altman. Introjetar o alimento é simbólico da descida em profundidade dentro de si. Conforme interagem, se revela também o mistério maior do filme: o livro de sucesso publicado por Felipe fora escrito na verdade por Rafa. A câmera, na linha do que Munsterberg imaginou, tenta reconectar esses seres degradados, distantes dos sentidos autênticos do mundo, e este esforço fica evidente na maneira como se aborda a relação dos convivas dentro da casa, no primeiro jantar. A câmera move-se horizontalmente pelo espaço, na tentativa de se integrar o máximo possível aos diálogos e situações. Ela é, portanto, meio livre, meio comprometida, quebrando, obviamente, a unidade de ponto de vista a todo o momento (como os já tradicionais travellings ao redor da mesa cheia de indivíduos, utilizados por muitos diretores), motivada pelas várias personalidades que deve captar, acreditando, assim, no deslocamento espacial da câmera como afixador e hierarquizador de valores, a exemplo da cena depois do jogo de futebol, quando ela segue os três protagonistas homens até que eles se reencontrem com as três personagens femininas principais. É justamente pelo sentimento de integração e desintegração com o espaço, que a câmera também vivencia, que não há praticamente nenhuma “panorâmica puxada” ao longo do filme.




 A multiplicidade de valores tematizados pode se impor por meio da montagem paralela, algo presente no trecho em que a “cafona” (como diz Silvana) canção “Total eclipse of the heart” é executada em CD, enquanto Cazé e Gus discutem o que é alta culinária e carnes nobres. Nessa cena, a câmera oscila entre perseguir o personagem de Paulo Vilhena e de Martha Nowill (que dançam), a bandeja de bruschetta preparada por Cazé, ou o personagem de Caio Blat se encaminhando para desligar o rádio. Ainda na mesma sequência, Silvana e Cazé discutem se a década de 80 e 90 foi a “merda” que o segundo acha, ou o ambiente no qual as pessoas se expunham, segundo a amiga. A discussão termina com Felipe defendendo que para fazer arte não é necessário viver seu conteúdo (“Para escrever um policial terei que matar uma pessoa?”, diz o sujeito) e com o desastre da carne nobre, queimada por Gus que se distraiu enquanto dançava. Esta alternância de sentimentos , opiniões e objetivos estabelece várias frequências em cena, difíceis de serem dinamizadas pela focalização, já que muitas narrativas e vozes são contemporâneas no quadro. Além disso, no plano simbólico, o desconforto de Gus ao servir a carne desastrosa e maquiada para os amigos, sintetiza mais uma vez incômodo que todos sentem de terem se tornado aquilo que não planejavam.




Esta oscilação de ângulos e da indefinição sensível do que é central e do que é lateral para câmera e para os personagens atinge o ponto culminante mais ao fim da obra. Depois que Silvana descobre o plágio de Felipe, este tenta possuir a amiga, por quem ainda é apaixonado, no mesmo lugar onde Rafa salvara um pássaro em 1992 diante dos dois. Silvana segura o “seu” livro nas mãos. Observamos a foto do autor jovem em primeiro plano, enquanto sua versão deturpada do presente participa de uma de suas cenas mais patéticas. Albert Laffey, um dos pioneiros na teoria cinematográfica, já explicou que a câmera é um artefato paradoxal, pois insere o “eu” na narrativa (nosso ponto de vista) como forma de assimilação perceptiva, mas ao fazer isso impede a totalidade da identificação simbólica, já que é sempre um recorte. A cena envolvendo o personagem de Caio Blat leva esta condição ao limite do perverso, pois sabemos que não deveríamos estar ali, mas, só porque estamos podemos reconhecer o nosso lugar (e posicionamento) em relação ao conflito decisivo do filme.




Dentro deste enredo, é angustiante que os cortes de cena não sejam nunca seguidos de mudanças espaciais significativas. Tudo se passa no mesmo terreno, o que fortalece o “aqui mesmo” (previsto por André Gaudreault e François Jost) do discurso cinematográfico, algo irônico já que ele sempre elabora seus conteúdos no presente, mesmo quando passados. Todas as disjunções espaciais provocadas pelos cortes são, por sua vez, “proximais”, o que salienta a comunicação vetorizada dos seres (entramos em quartos, na sauna, na piscina atrás deles...).
A incomunicabilidade revelada na dinâmica do grupo (ao fim, alguns deles nem suspeitam do segredo de Felipe), a ausência de eixos para a focalização, o uso de elementos do espaço para alienar uns personagens dos outros, criando outros enquadramentos dentro do quadro geral, tudo isso pode ser contextualizado por certas constantes temáticas do filme e que devem ser observadas. Começamos pela tipologia dos protagonistas. Todos de classe média urbana, obrigados a resolver seus problemas em um ambiente rural. Em certo momento, o conflito campo/cidade se estabelece, a exemplo do caseiro que cobiça Drica (e a perícia dos “peões” da casa no futebol, massacrando o trio masculino principal). Na mesma cena, possivelmente para enfatizar o sentido anterior, Drica brinca que Silvana é “senhora do campo” e fabula sonhos eróticos no qual ela transa com o jovem caseiro. A mentalidade da vida rural também é metaforizada no pássaro que Rafa salva, símbolo para a liberdade que tinham (é o personagem de Lee Taylor também quem abraça uma árvore, ainda no início da película), e no cascudo de patas para o ar que Felipe se recusa a ajudar, metáfora para a estagnação de suas vidas, como parece sugerir a cena final.




Nesse sentido, por trás do filme se repensa o caráter dilacerado de nosso progresso, feito às pressas após a colonização (Silvana comenta que a prática do topless ainda não é bem visto no Brasil, acostumada que está com costumes europeus) e impulsionador de uma cultura eternamente dependente da natureza (em seus principais símbolos), construída no hibridismo da alta cultura com a baixa. Talvez por isso sua trilha sonora principal seja “Na asa do vento” (música que Cazé executa duas vezes ao violão, acompanhado por todos, ainda que, na segunda vez, ela seja interrompida pela trilha incidental de mistério), popular sucesso de João do Vale, mas apresentada aqui na versão vanguardista de Caetano Veloso, na época do polêmico disco “Joia”. Ora, a instabilidade emocional do grupo é contraparte de nossa instabilidade histórica e cultural. Não por acaso, no último jantar na casa, Cazé e Drica puxam a canção tema da vitória de Lula nas eleições de 2002, ao mesmo tempo em que discutem sobre quem transaria com quem, a copa de 98, o PT e a salvação do país, e onde estavam na tragédia do onze de Setembro (Drica, emblematicamente, diz ter visto tudo em meio à alucinação após uma endoscopia, o que atesta a forma parcial e lacunar com que a história se relaciona com cada um deles). Logo o tópico histórico se torna pessoal “Quer dizer que você sujou a mão para chegar onde chegou?”, pergunta Felipe ao ouvir Cazé dizer que ninguém ascende socialmente sem se corromper. Esta é a angústia maior. A derrota dos sujeitos imersos no decorrer da história geral não desacelera seu andamento teológico e unilateral. O resto é rastro.
Por causa disso, cabe ao filme conviver com outro paradoxo, este próprio da linguagem cinematográfica, como já apontaram Jost e Gaudreault :

Até mesmo quando as palavras apresentam os eventos como já acontecidos no passado, o rolo das imagens do filme só pode mostra-los no decorrer de sua realização: esse tipo de contradição existe tanto na época do cinema mudo, quando a cartela conta um fato já acontecido e a imagem mostra esse mesmo fato acontecendo, quanto no cinema sonoro, notadamente com a utilização da voz over: certas vozes over estão de fato no imperfectivo, e por essa qualidade coincidem com a própria natureza da linguagem cinematográfica

A unidade de espaço do filme só enfatiza a anormalidade do “aspecto indicativo” no cinema. A maior tragédia dos personagens (em especial de Felipe) é viver tudo em aspecto processual, inacabado e progressivo. Na segunda vez é farsa, disse Marx. Mas a última imagem do filme é um close (carregado de emoção Munsterbergiana) no cascudo sendo posto finalmente de pé pela mão amiga de Gus, referência à metamorfose, de Kafka, citada por Rafa e Felipe no início do enredo. O bicho no início de sua caminhada é o indício da catástrofe da história (dos personagens, do país) que não para para olhar suas ruínas, pois o movimento é sua única salvação de si mesmo, ainda que exclame: “Que puta saudade do que somos”.




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