segunda-feira, 23 de março de 2015

Selvageria relatada




Mauro Nicola Póvoas

Em Relatos selvagens (Relatos salvajes), vê-se mais uma vez a qualidade técnica e estética que o cinema argentino alcançou. Há pelo menos quinze anos fala-se de um “Novo Cinema Argentino”, que tem na figura onipresente de Ricardo Darín a sua pedra de toque. Até um Oscar os hermanos ganharam nesse período, com O segredo dos seus olhos em 2010 (Darín é o ator principal, óbvio!), para a inveja do Brasil, obcecado pelo prêmio da Academia. Nosso país, aliás, é dono de uma filmografia respeitável, com atores e diretores de alto nível, mas parece ainda se ressentir da dualidade, por vezes redutora, do cinema político-ideológico, de cunho exaustivamente denunciatório e social versus o cinema culinário das comédias sem graça que assolam as salas de cinema, em geral películas produzidas pela Globo Filmes e/ou tendo os atores da emissora como protagonistas. Da Argentina, por outro lado, parece emanar um frescor temático que alcança a subjetividade de cunho filosófico-existencial que faz todo o grande Cinema (você sabe o que estou falando – Fellini, Scola, Kubrick, Lynch, Allen etc.), não o simulacro que inunda os shoppings toda a semana. Dito isso, queria fazer uns comentários sobre os seis relatos selvagens apresentados por Damián Szifrón.



Nesse conjunto sêxtuplo de histórias, observa-se que não há nenhuma relação aparente entre os personagens, mas a unidade temática do filme é garantida pela recorrência, nos enredos, por assuntos que giram em torno da vingança, da ira, do desajuste. Essa unidade temática é que garante que o filme não tenha os altos e baixos tão comuns nos filmes de episódios – a película é excitante e mantém uma espantosa regularidade, muito também devido à atuação dos atores, ao roteiro burilado e à direção segura. É também de se destacar que em nenhum dos episódios aparecem armas, que muitas vezes simplificariam e banalizariam o enredo, levando em conta o tipo de história desenvolvida. Se o filme fosse norte-americano, a presença de revólveres seria uma constância, dentro do culto às armas de fogo que os Estados Unidos empreendem mundo afora.
Na verdade, pode-se dizer que talvez seja a vingança o principal componente do cardápio, já que ela está presente em todos os seis segmentos: 1) “Pasternak” (avião); 2) “As ratazanas” (restaurante); 3) “O mais forte” (estrada); 4) “Bombita” (engenheiro); 5) “A proposta” (caseiro) (neste, a vingança está atenuada, embora se concretize ao final); e 6) “Até que a morte nos separe” (casamento). Sentimento universal e atemporal, a vingança caracteriza-se pela gana do ser humano de cobrar com juros humilhações sofridas por si ou por alguém próximo, sendo expressa constantemente na literatura e no cinema. Seja dito de passagem: quando penso em vingança, sempre me vem à mente “O barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe, que retrata um plano vingativo planejado cerebralmente e executado com precisão e perícia, pois que nunca será descoberto; neste sentido, o conto de Poe é a antítese das pequenas histórias da produção argentina, em que pouco é planejado com antecedência (exceção são os episódios “Pasternak” e “Bombita”), pois os instintos afloram sem quase nenhuma mediação intelectual.



Nos episódios supracitados, nota-se também a força da máquina, como no avião do episódio 1, e nos carros presentes em 3, 4 e 5; em especial nesses três últimos episódios, o automóvel constitui-se como personagem, que determina destinos, mapeia desilusões e serve de válvula de escape de uma vida robotizada e limitada. Um dos itens essenciais da sociedade de consumo, o uso do carro no filme descortina aspectos negativos dos veículos automotores: poluente, agressivo e antissocial, ocupa o espaço do humano nas cidades, sufocando, agredindo e matando, tornando a indiferença a regra geral.



Se o carro é um elemento importante para a compreensão do filme, o sexto e último episódio desmascara e ridiculariza outra instituição-símbolo da burguesia: o casamento, demonstração ritualizada de poder e riqueza das classes média e alta. A cerimônia de casamento como a alegoria da dissolução do mundo das aparências burguesas já foi tratado no cinema por Bergman, Altman e Vinterberg, por exemplo, mas aqui surge com rara e renovada maestria. A escalada vertiginosa de descobertas, xingamentos e humilhações entre noivo e noiva leva a uma redenção catártica, em meio a esperma, sangue, suor e lágrimas. É, na minha opinião, o melhor episódio do filme, juntamente com o inacreditável episódio 3, em que os dois homens protagonistas ficam reduzidos à lei do mais forte. Isolados geograficamente, perdidos em uma estrada deserta, a situação metaforiza a ausência de civilização e carinho da sociedade atual, pois os atos dos dois motoristas sucessivamente recendem preconceito, rancor e raiva. Nesse episódio, verdadeira montanha-russa de emoções e agressões, não há como não lembrar o espírito de certas séries animadas clássicas, como Tom e Jerry e Papa-Léguas.



Aliás, as convenções burguesas, uma a uma, são atacadas no filme: no episódio 1, bullying e relações familiares, profissionais e afetivas se entrecruzam de forma ao mesmo tempo risível e desastrada; no 2, o representante indigesto da mistura de política e agiotagem termina da pior maneira possível; no 4, “Bombita” tem o seu “dia de fúria” (sim, a referência aqui é o filme homônimo de 1993 dirigido por Joel Schumacher e protagonizado por Michael Douglas), contra a burocracia inepta que quer controlar o cidadão, que quanto mais pacificado e humilhado melhor; ou no 5, em que nenhum dos estratos da sociedade demonstra possuir resquícios de pudor – patrões, empregados, profissionais liberais (advogados) e funcionários públicos (delegados) igualam-se, todos, na impunidade, na falta de moralidade e no desejo de enriquecimento rápido e fácil.



No clássico álbum em quadrinhos O homem é bom? (Porto Alegre: L&PM, 1984), a pergunta do título tem uma resposta límpida e cristalina, ao longo de suas histórias: não, o homem não é bom, e o autor Moebius brinca com o sentido duplo da palavra – se o caráter do homem é ruim, também o gosto da carne humana não é aprazível ao paladar. Em Relatos selvagens, a resposta, a cada momento, também vai se delineando no mesmo sentido daquele engendrado pelo desenhista francês: o homem não é bom, pois rompe o delicado e antinatural “contrato social” a todo momento, movido pela angústia, pela falta de ética, pela morbidez, pela violência. Inverossímil por vezes (sem estragar a fluência da obra) na sua tragicomicidade, o filme faz com que em meio às cenas mais selvagens o riso saia incrédulo. A catarse, que vai se moldando ao longo de todo filme, atinge o seu auge no último episódio, com a grande cena final, que não pode ser contada para não estragar o prazer da recepção, para aquele que ainda não viu a película.



Ao fim, restamos completamente exauridos da violência que se apresenta em todo o filme, estupefatos com o fato de sermos da mesma raça das figuras ficcionais que desfilam na tela – “sim, eu poderia ter feito aquilo”, é um pensamento que vem à mente. Por enquanto não fomos nós, e a função higienizadora da arte vem à tona, mas na próxima esquina quem sabe eu ou você não caiamos na mais pura selvageria com alguém que cruze o nosso caminho. Será que o sucesso de público do filme não pode ser em parte explicado pelo fato de ele desnudar o desejo do ser humano de, em certos momentos, se livrar completamente das amarras morais, físicas, comportamentais, para, livre finalmente do superego, tornar-se mais insuportável e mesquinho do que já é? Chegando então a essa situação, o único caminho é a autodestruição, fim talvez inexorável da raça humana.

E é sobre isso que Relatos selvagens nos dá notícia.

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