Daniel Baz dos Santos
Quando
explode a vingança (1971) foi concebido para ser dirigido
por um norte-americano. Nomes como Peter Bogdanovich e Sam Peckimpah foram
cotados para coordenar a produção e, ainda que confie na capacidade criativa de
ambos (e certas passagens de Meu ódio
será sua herança remetem em certa medida ao filme aqui analisado), não
posso deixar de sentir-me alegre pelo projeto ter chegado a Sergio Leone. O
diretor estava no auge da sua carreira, após ter feito sua obra maior Era uma vez no oeste e consagrar-se como
um dos maiores diretores de todos os tempos, adorado pelo público, mesmo que
rejeitado por imensa parte da crítica especializada. O filme, de fato, deveria
integrar uma segunda trilogia leoniana e receberia o título de “Era uma vez na
revolução”, central, portanto, no projeto de reinvenção do diretor, ávido por
expandir suas técnicas narrativas e o conteúdo de seus filmes. De acordo com
Douglas Kellner: “A violência dos filmes de Leone estava aumentando
mais e mais (e a renda de bilheteria também!) afinal, esse era comprovadamente
o segredo de seu grande sucesso. Em contrapartida, o diretor procurava,
astutamente, equilibrar sempre aquela violência com toques de ironia, farsa e comicidade,
lembrando ao público que aquilo tudo não passava de um filme.”
Quando
explode a vingança apresenta Rod Steiger no papel do
mexicano Juan Miranda. No início do filme, ele aguarda na beira de uma estrada
e, quando vê uma carruagem de luxo vindo em sua direção, decide pedir carona a
ela. Este início se relaciona com as outras “cenas de espera” que abrem muitos
dos filmes de Leone, como a chegada de determinado veículo a um lugar
específico em Por uns dólares a mais
e na magistral sequência inicial de Era
uma vez no oeste, ou a vinda aguardada de certo personagem nas primeiras
tomadas de Três homens em conflito. Juan
sobe na carruagem a contragosto dos burgueses que a integram. Estes não querem
receber um mexicano miserável em seus aposentos e caçoam da pobreza do sujeito,
chamando-o de “animal” e questionando sua paternidade.
Toda esta sequência
apresenta uma série de elementos que revelam a mudança de rumos na proposta
cinematográfica do diretor. Primeiramente na sua relação intertextual com o
maior clássico do faroeste: No tempo das diligências,
de John Ford. Assim como na obra de 1939, aqui o ambiente interno do veículo
funciona como microcosmo do universo social e seus conflitos e estabelece um
contraste brutal entre o exterior desértico e o interior extravagante do
transporte. A diferença central aqui é que a sociedade não tem mais chance de
redenção. Todos estão em franca decadência moral e, por isso, terão seu
percurso interrompido drasticamente. No entanto, a importância da cena é muito
mais estilística. O espectador que conhece a filmografia de Leone (e o diretor
adorava sinalizar para a própria obra) aprendeu a reconhecer o jogo preciso estabelecido
pelo diretor com o uso dos planos detalhes, especialmente em suas cenas de
duelo. Num primeiro momento, eles serviam como contraponto ao ambiente vasto
das montanhas rochosas e canyons que
marcam o gênero. O corte abrupto, do muito pequeno para o muito grande, ajudam,
nesse sentido, a estabelecer um conflito de interesses entre homens rústicos
que são a um só tempo o produto e os produtores do cenário no qual caminham,
passivos e ativos no drama e, dessa forma, inicialmente ambíguos (como o vilão
vivido pelo símbolo heroico Henry Fonda em Era
uma vez no oeste).
A ideia do close como realce da expressividade do
ator, presente na gramática clássica do cinema, nunca esteve no modus operandi leoniano. Basta lembrar
seu famoso “elogio” a Clint Eastwood: “Gosto de Clint porque ele tem apenas
duas expressões. Com chapéu e sem chapéu.”. As tomadas fechadíssimas têm ainda
o propósito narrativo básico de acentuar o suspense, elaborar o momento que antecede
a explosão de violência que, sabemos, inevitavelmente virá, como se o instante
antecedente a ela fosse ainda mais importante do que os disparos e mortes
consequentes. No entanto, utilizados em contextos distintos ao longo da
carreira do diretor, os recortes limitadíssimos nos rostos dos atores,
notadamente nos olhos, estabelecem um recorte na figura humana que transcende a
metonímia, já que nos impede de ter acesso ao valor total das figuras, que tem
sua integridade fragmentada pela lógica da montagem. O rosto, os olhos, a mão,
o revólver, cada um destes elementos permanecem dotados de seu próprio universo
particular. O maior manifesto desta lógica é o duelo final de Três homens em conflito. Quando o
personagem de Clint Eastwood finalmente dispara, um plano abertíssimo mal
permite que vejamos os personagens após a conclusão do conflito, sugerindo que
o resultado do duelo (ou seja, aquilo que interessa ao enredo) situa-se em um
conjunto de signos diferentes do mundo fetichista anterior ao combate propriamente
dito. Por esta via, Leone estabelece um olhar irônico ao papel da violência na
resolução dos dramas humanos, já que os indivíduos que a propagarão são
amontoados cubistas de partes descontextualizadas e desconexas, íntegras apenas
graças à magia da edição.
É esse conjunto pessoal
de códigos que o diretor irá subverter na cena da carruagem em Quando explode a vingança. Nela, os
famosos planos-detalhe são utilizados para ressaltar as bocas e os olhos dos
terríveis membros da sociedade, quanto eles ofendem e vociferam contra Juan
Miranda. Além disso, alguns dos personagens se alimentam durante toda a
sequência e os closes permitem que
vejamos seus lábios e dentes enquanto mastigam, criando uma associação natural
entre o fastio e a maldade. Essa relação ajudará a criar o tom romântico dos
revoltosos paupérrimos que serão apresentados depois. Leone parece dizer que,
neste seu novo filme, esta é a violência que realmente importa, dos afortunados
contra os miseráveis, e ela não tem nada de cool,
o que explica a transgressão operada nos limites dos próprios mecanismos
estéticos canonizados por ele, permitindo, assim, que sintamos asco pelas
figuras e desejemos a punição que elas receberão a seguir.
Isso porque Juan é na
verdade o líder de um bando de criminosos mexicanos que tomou a carruagem para
poder roubar os seus pertences, sendo nisso bem sucedido. A cena na qual Juan
se revela o líder é contígua às imagens dos nobres agora nus e sem a altivez
anterior, ou seja, a edição trata de demonstrar que a mudança de sorte de um (o
bandido que prospera) exige o final trágico do outro (os ricos humilhados). Por
fim, o plano que revela Rod Steiger metamorfoseado, de pobre mexicano
inofensivo, para o terrível e poderoso bandido sinaliza para outro momento de No tempo das diligências, o nascimento
do fora-da-lei moderno, quando John Wayne surge na tela.
Logo, Juan conhecerá o
segundo protagonista do longa, o terrorista irlandês Sean Mallory, ou John
Mallory, vivido por James Coburn. Ambos irão se unir em prol da revolução
mexicana no final da primeira década do século XX. Juan torna-se um herói
revolucionário sem querer, quando Mallory, cada vez mais interessado pelos
interesses da revolta popular, o instiga a assaltar o banco de Mesa verde.
Motivado pela oportunidade de riqueza, o bandido aceita ingressar no roubo, mas
se surpreende ao descobrir que, ao invés de dinheiro, os cofres guardavam os
prisioneiros do governo, em um simbolismo fácil, mas eficaz. A relação
conflituosa entre os dois protagonistas é o início de uma forte amizade,
dinâmica presente em outros filmes do diretor. A entrada de James Coburn (que
só aceitou o papel após ouvir de Henry Fonda que trabalharia com o maior
cineasta de todos os tempos) é outro simbolismo funcional que muitos podem
considerar deselegante. Dentro de seu sobretudo, o terrorista estrangeiro
carrega quilos de dinamite e litros de nitroglicerina, o que o converte em uma
pequena alegoria da revolução, já que os vários interesses que a envolvem
(“revolution is confusion” – diz certo personagem) transformam todos os
envolvidos em bombas em potencial: “Quando eu cair, metades deste maldito país
cai comigo”- afirma Mallory.
O ideal de adquirir
ouro de Juan é tratado como um sonho deslocado da realidade social mexicana. No
momento em que ele conta seus interesses a Mallory, ambos se alimentam em
cadeiras luxuosas posicionadas na beira de um desfiladeiro, imagem que se
parece muito com um deslocamento de tipo surrealista e debocha, em certa
medida, dos objetivos do mexicano. Algumas transferências dessa ordem serão
operadas em outros momentos do filme, como o leitor no trem que se mostra mais
preparado que os próprios bandidos, ou mesmo as cenas “foras do lugar” que
contam o passado de Mallory e ajudam a construir o caráter e as motivações do sujeito.
Aqui Leone está reciclando a fórmula presente em Era uma vez no oeste, quando entendemos as intenções vingativas do
Gaita, mas em Quando explode a vingança,
o recurso nunca atinge a mesma força presente em seu predecessor. No entanto,
estas “transferências” de sentido são coerentes com a mudança de função dos
protagonistas que são retirados de seu rumo natural. Algumas delas se
manifestam na forma de chistes cinéfilos, como o fato de Juan batizar um de
seus filhos de Napoleão, quando sabemos que Rod Steiger viveu o herói um ano
antes em Waterloo.
Outro componente
essencial na composição da história e que demonstra a competência do diretor
italiano é a presença das frestas em vários ambientes, por onde muitos
personagens veem o mundo. Elas estão espalhadas por todo o filme, a exemplo da
sequência final, passada dentro da locomotiva. Estes momentos revelam a
natureza enviesada do olhar dos protagonistas. As visões destes homens estão
sempre irremediavelmente comprometidas, tornando-os incapazes de ver o todo que
os cerca. Sua posição está, portanto, à margem do que é visto, alienada daquilo
que observam e os situa aquém do espaço das pessoas comuns. Além disso, o
recurso trata-se também de outra forma de entender a presença dos closes extremos nos olhos dos heróis,
sendo sua contraparte estilística. A redução do mundo pela forma como o sujeito
o olha é complementada pela diminuição do homem ao ato de olhar. Seria essa uma
forma de estabelecer a natureza metanarrativa de alguns planos fechados de
Leone, já que nós, os espectadores, também ambicionamos este espaço edênico,
protegidos no escuro, de onde podemos observar a violência sem dela sofrer as
consequências. Esta impossibilidade foi retratada no primeiro western de todos os tempos (considerado
por muitos o filme que inaugura também o próprio cinema) O grande roubo do trem, que termina com o bandido atirando contra a
câmera, vitimando também o público e revelando, por extensão, o dispositivo
ilusório da sétima arte.
Outra forma de entender
estes procedimentos seria aliá-los a certas decisões da edição, especialmente
na cena em que o assalto ao banco é iniciado. A montagem paralela brinca com as
idas e vindas da visão subjetiva para a objetiva, ou se situa em pontos de
vistas mistos, como quando focaliza o relógio que Mallory observa, e erra pelos
espaços, apresentando os reflexos dos lugares e dos seres em janelas ou outras
superfícies envidraçadas. Este conflito de interesses, que torna o mundo um
caleidoscópio substancioso de intenções, é parodiado no momento em que Juan
olha a movimentação do vilarejo através dos “olhos” do governador que estampa
cartazes pela cidade. Mais uma vez, em toda a longa sequência há o ideal da
suspensão que precede os disparos e explosões.
A respeito disso, é
necessário notar o olhar particular de Leone a respeito da função do revólver
(e das armas de fogo em geral) em seus filmes. O revólver em sua obra é tudo
menos o objeto físico, servindo antes como uma extensão da vontade dos heróis,
uma espécie de vara de condão mágica, que impõe ao mundo aquilo que quem o
porta almeja. No cinema de Sergio Leone, o revólver faz com que as pessoas
parem de caminhar ou se ponham em movimento (basta dar dois ou três tiros na
frente ou atrás do alvo), caçoa e graceja dos oponentes (veja-se a apresentação
do personagem de Clint Eastwood em Por um
punhado de dólares ou no “duelo do chapéu” em Por uns dólares a mais). A arma pode também abrir portas e mesmo
servir de prisão para uma irritante mosca (no início de Era uma vez no oeste). Torna-se, assim, uma forma de projetar o
desejo dos homens (e aqui seu simbolismo fálico parece ser central) na
realidade, sendo a cena na qual Juan afasta um cadáver que o perturba do espaço
em que se encontra com tiros de metralhadora a mais reveladora desta sua
função. Essa onipresença do objeto é usada até mesmo de forma metanarrativa, já
que, nos letreiros dos filmes de Leone, uma série de disparos escrevem ou
retiram os nomes dos crédito dos filmes, brincadeira reveladora do papel das
armas de fogo no imaginário do diretor.
No entanto, esta
reflexão serve de base para o entendimento de uma das principais cenas de Quando explode a vingança: o momento em
que Juan Miranda entra no esconderijo dos seus companheiros e encontra todos
mortos. Enquanto ficamos vendo os corpos, com auxílio da câmera que os mostra
lentamente, ouvimos os disparos de metralhadora de Miranda que busca vingança.
Sendo assim, a violência presente na retaliação (e que é o centro deste e da
maioria dos plots da cinegrafia
leoniana) está artificialmente desligada do sentimento catártico que ela
poderia atingir, já que somos obrigados a observar os corpos dos adultos e
crianças que jazem no chão durante um longuíssimo período. Os sons que ouvimos
nada têm a ver com as marcas de balas que vemos. É emblemático também que a
cena ocorra no interior de uma gruta, discordante com os espaços abertos
presentes no resto do filme, já que estamos diante de uma manifestação
particular de desencanto e desilusão a respeito da solução dos dilemas trazidos
pelos protagonistas, ideia articulada com o caminhar errático e desanimado de
Mallory ao fim da sequência, carregando um revólver inerte e de ponta cabeça
entre os dedos.
“A revolução é um ato
de violência”, diz a frase de Mao Tsé-Tung citada no início do filme. Com base
nisso o final da obra é legitimamente em aberto. Uma pausa artificial no rosto
de Juan revela um movimento social que não tem ponto final pacífico. O último western de Leone se dá ao luxo de optar
pela não finalização esquemática da intriga e nos abandona diante de mais um
rosto imenso, recortado de contexto, uma imagem típica do diretor, mas que,
talvez pela primeira vez, já não nos seja suficiente. Ao invés de atirar em
nós, como o fora-da-lei de O grande roubo
do trem, Juan Miranda nos encara e pergunta: “E eu?”, repleto ainda de
mistérios, alienado do todo que o cerca, despedaçado e enigmático para si
mesmo.
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