domingo, 20 de setembro de 2015

As mínimas histórias de Carlos Sorín

Daniel Baz dos Santos

Tem coisas que são adiadas por bem. Sempre acompanhei o cinema latino-americano com entusiasmo. Autores como Glauber Rocha, Jodorowsky, Lucrecia Martel, Tomas Gutiérrez Alea, Juan Jose Campanella, Pablo Larraín, entre outros, me comoveram profundamente com seus filmes durante boa parte de minha vida ou me desafiaram a compreender seu código, emancipando-me nas duas situações. No entanto, nunca havia assistido Carlos Sorín e não há razão lógica para esta falta. Sabia do sucesso de “Bombón, el perro” e da trajetória do renomado diretor, principalmente a partir dos anos 2000. Contudo, somente neste 2015, tão presente e já tão longínquo, dediquei-me a assistir a obra do mestre argentino. E que alegria de ter esperado!
A crítica tem apontado com acerto que Sorín é o diretor (ao menos um dos) das coisas pequenas. Os conflitos que preenchem seus filmes transitam na ordem do “homem comum”, grande imagem do cinema argentino como um todo, popularizada pelo fenômeno quase onipresente de Ricardo Darín, que vive este tipo com intensidade em diversos trabalhos (mas, estranhamente, nunca atuou em um filme de Sorín). A trajetória cinematográfica do diretor é atípica. Depois do pouco conhecido La película del rey, conseguiu orçamento para filmar Evermile, New Jersey (1989), que conta com a presença de Daniel Day-Lewis em seu elenco. Já em 2002 o diretor volta com um novo filme, desta vez dentro do “boom” conhecido como Novo Cinema Argentino (NCA), ainda que muitos autores reclamem deste rótulo, como acontece com a também polêmica “Retomada” brasileira.



Sua obra mais emblemática talvez seja História mínimas, na qual somos apresentados a três enredos distintos e complementares. O primeiro se refere a Don Justo, que mora com o filho no armazém que um dia foi gerenciado por ele, e que agora pertence ao seu primogênito. O idoso decide viajar de Fitz Roy até San Julian para encontrar o cão que havia perdido tempos atrás, contra a vontade de seus familiares. A segunda narrativa trata de Roberto, um vendedor ambulante cuja vida é pautada pela filosofia de manuais de autoajuda do tipo “Como ser bem sucedido”. Este também está em franco deslocamento, com o intuito de dar um bolo de aniversário ao filho da viúva de um ex-comprador por quem está apaixonado. Por fim, acompanhamos Maria Flores, uma dona de casa que também deve ir a San Julian, por ter sido sorteada em um programa de televisão, onde as pessoas podem ganhar, girando uma roleta, um multiprocessador, entre outros prêmios de menor monta.
A partir das histórias expostas é possível perceber que o gênero Road movie é uma característica forte no trabalho do diretor, presente também em O cachorro. Seu universo apresenta um repertório amplo de imagens do interior argentino, que, certas vezes, beira o documental (caráter realçado por sua decisão de usar “não-atores”, ou “quase-atores”, como já explicou em diversas entrevistas). Nesse sentido, Sorín é herdeiro dos "travelogues", os filmes de viagem que mostravam imagens exóticas entre os anos de 1890 e 1920. No entanto, o “filme de viagem” tradicional é irmão de obras como “Viagem à lua”, de Méliès, onde partir para território distante é fantasiar e se surpreender. Esta mescla do registro factual e do fictício rendeu uma obra-prima do cinema brasileiro: “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, documentário que, durante sua produção, tornou-se um exercício de ficção propriamente dita (já que, como sabemos, o gênero documental usufrui das mesmas técnicas compositivas que seu cinema irmão). Além dessa ambiguidade discursiva, o road movie em Sorín respeita aquela oscilação própria do gênero, revelada primeiramente por David Laderman, entre os valores conservadores da sociedade e o desejo de rebelião. Interessante que uma reflexão operada no interior do cinema norte-americano sirva tão bem ao presente caso argentino (e também no brasileiro, se pensarmos a obra de artistas como Walter Salles).



A busca do cão (tópico presente também em O cachorro) é o dado simbólico mais explícito deste descolamento, motivador da descoberta do próprio lugar no mundo e de uma maior conscientização a respeito do universo ao redor. Por esta via, a primeira cena do filme é metaliguística, pois representa o aprendizado do olhar e a adequação do ponto de vista pessoal ao resto do mundo, mimetizada pela ida de Don Justo ao oculista. Na cadeira do exame de visão, com aquela engenhoca sinistra diante dos olhos, o velho exclama diante do resultado negativo: “Mas Doutor, eu nunca dirijo na estrada. Só quero a carteira para dirigir na cidade”, o que prova o sedentarismo atual do protagonista. Os créditos iniciais da obra são mostrados tendo ao fundo os painéis fora de foco que o homem observa (informações como o nome do diretor e os patrocinadores aparecem, contudo, nítidos em primeiro plano). Esta indefinição do universo, opaco e confuso, também será operada no interior do trajeto desenvolvido por Don Justo.



Na próxima cena protagonizada pelo personagem o vemos diante do mercado que o filho herdou, observando a estrada, enquanto saboreia o seu chimarrão. Ela aqui é ainda um potencial, elaborado pelo enquadramento e o desejo de aventura representado pelos tênis de alpinista que o senhor calça. Quando tenta conversar com filho sobre sua empreitada, este está arrumando a antena parabólica da residência, comentário irônico a respeito do sedentarismo das personagens, desinteressadas pela epopeia real e hipnotizadas pelas ondas de rádio e TV. Não por acaso uma de suas três personagens principais conhecerá o funcionamento de um programa de televisão e muitos dos estabelecimentos mostrados pelo filme possuem um destes aparelhos ligados (e apresentam novelas, o carnaval e propagandas de diversos tipo). O desejo de novidade é também bivalente em um universo subdesenvolvido e encontra o seu contraponto na cena em que as velas novas em um bolo não podem ser apagadas, pois voltam a acender depois de sopradas, uma “tecnologia” inútil e desconcertante que simboliza a relação das personagens interioranas com os ideais modernos. Em resumo, se a estrada é uma imagem de aproximação com o novo, o filme explora essas outras novidades que parecem pôr em diálogo a lógica provinciana e os produtos "de fora", síntese que para muitos é essencial no entendimento da latinidade.



Maria, contudo, irá trocar a multiprocessadora por uma janta, já que não tem dinheiro para ficar uma noite a mais na cidade. Na cena em que a personagem ganha o prêmio, não vemos nada além de um close fechadíssimo em seu rosto e o encantamento com o circo televisivo, situação que se processa muito bem em outros filmes contemporâneos, a exemplo do chileno “Tony Manero” (em que um personagem perde tudo para participar de um concurso televisivo de imitações de John Travolta) e do italiano “Reality – a grande ilusão” (no qual um personagem tenta a todo custo participar do Big Brother).



Além disso, os espaços de intimidade, repletos de imensa cortesia, principalmente no périplo de Roberto para tentar consertar o nome errado que pôs no bolo de aniversário, se contrapõe ao espaço aberto da estrada. O trajeto deste personagem incorpora uma das grandezas de nossa tipologia enquanto comunidade subdesenvolvida, ou seja, a improvisação, a necessidade de resolver problemas com aquilo que, ainda que insuficientemente, temos à disposição. É nesse tratamento da vida comum que temos a dupla face do realismo de Sorín. Segundo Glauber Rocha, em clássico texto, se Visconti discursa dialeticamente sobre um tema qualquer, Rosselini costuma lançar perguntas a ele. Ainda que não concorde integralmente com a redução proposta pelo cineasta baiano a respeito dos autores italianos, é frutífero relacionar este último, que não buscava mais a compreensão materialista da história, com Sorín, para quem a realidade carece de lógica e, por isso, é retratada com estranhamento. As coisas em dados momentos são novamente vistas e não apenas “reconhecidas”, como se objetos mundanos (assim como as pessoas que os possuem) pudessem ter um valor simbólico nunca pensado. Muito desse impacto é incorporado à experiência do leitor na percepção que as personagens também adquirem (sempre parcialmente) do mundo ao seu redor, o que explica os inúmeros closes em itens do cenário aparentemente desimportantes. O maior manifesto desta atitude é o início de “O cachorro”, na qual o protagonista tenta explicar para um grupo de operários que o cerca o porquê de sua faca artesanal valer o valor cobrado (o que não convence os possíveis compradores).



Isso também está em dia com outra opinião de Glauber Rocha, ao falar no percurso do cinema de Buñuel, Vigo e Rosselini, cuja súmula marginal seriam a liberdade, o misticismo e a anarquia, únicas formas de fugir do espetáculo. Sobre esse cinema defende que: “Seu estilo é uma ideia em movimento – a liberdade realista desta ação é seguida por um olho atento aos detalhes: a ducha de água quente e fria, irregularmente, jamais permitindo que o espectador pare de pensar”. O mesmo pode ser dito do repertório imagético de Sorín em vários pontos de seu trabalho.
A cena final  de "Histórias mínimas" se passa dentro de um ônibus com alguns dos personagens voltando para a casa, em uma síntese entre intimidade e estrada. Maria, antes de o filme terminar, se olha em um espelho, como se finalmente se reconhecesse, sendo esta a última alegoria do filme. Ismail Xavier em “A alegoria histórica”, explica que “O surgimento de uma concepção de história como um processo ininterrupto de produção, mudança e dissolução de sentidos acabou por desautorizar antigas concepções de signos e práticas discursivas como elementos capazes de produzir interpretações estáveis e universalmente válidas, relacionadas orgânica e necessariamente às verdades essenciais da vida. A cultura moderna, perseguida por uma noção radical de instabilidade, parece condenada a explorar as implicações do fato e que os significados – notadamente nos novos contextos culturais de combinação de signos – podem ser esquecidos, deslocados e retorcidos em face das forças históricas e sistemas de poder. Essa nova consciência de instabilidade apenas reforça uma antiga percepção do caráter problemático dos processos de significação – percepção que atualmente nos distancia do paraíso perdido das linguagens transparentes.” Sorín é inteligente ao mostrar o duplo espelhamento da consciência que parece se reconhecer, ainda que de forma parcial e refratada, e apostar nesta representação autoconsciente e nada ingênua para repensar o discurso que produzimos acerca de nós mesmos. É por este olhar humanamente preciso que agradeço a oportunidade de ter conhecido o trabalho do diretor com maturidade o suficiente para entender parte de sua grandeza, sustentada por seres mínimos como eu.


Nenhum comentário:

Postar um comentário