sábado, 21 de novembro de 2015

Sobre a recepção de Jean-Luc Godard nas salas de cinema


Mauro Nicola Póvoas

Este texto vai para o Zé.

Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo de 9 ago. 2015 (domingo, p. 2), na crônica “Allen e Godard”, diz que este último, “papa da chamada Nouvelle Vague, continua a fazer filmes para si mesmo e para alguns fiéis. Ele sempre quis fazer pensar. Sempre vejo. E durmo. Mas não deixo de ver. É uma experiência antropológica”. Interessante constatar que a ironia de Juremir joga com o fato de a suposta falta de linearidade dos últimos filmes de Jean-Luc Godard ser um soporífero potente aos espectadores incautos. No dia 12 ago. 2015 (quarta-feira, p. 2), Juremir volta rapidamente ao assunto, para decretar: “Hoje, só três nomes ainda me fazem sair de casa: Woody Allen, Quentin Tarantino e Jean-Luc Godard. (...) Detesto ver sempre o mesmo velho filme de Godard”. De novo, no fio da navalha entre o elogio e a crítica, o cronista deixa ambígua a sua posição sobre a obra do cineasta, acostumado, aliás, ao “ame-o ou deixe-o”. Não parece, realmente, ser possível a mediania em torno de Godard.
Estes dois textos de Juremir, somado ao fato de eu ter visto recentemente um filme de Godard, fizeram com que eu pensasse um pouco sobre a minha relação com o diretor francês, para alguns gênio, para outros louco e para uns simplesmente um chato.



(Não tenho muita paciência de baixar filmes para vê-los em um notebook ou tablet. Acho, quixotescamente, que filmes precisam ser vistos pelo menos numa tela de mais de 20 polegadas. Na verdade, para mim, filme é para ser visto na telona, com gente respirando ao lado e rindo e incomodando e comendo pipoca e resfolegando e fungando. Senão não é cinema. Podem dar o nome que quiserem, mas ver filmes na mesma sala em que se come & dorme & se vê o Silvio Santos & se joga videogame (enfim, onde se vive) é outra coisa. Sendo assim, prefiro não ver um filme, qualquer filme, se as condições de pressão, temperatura e legendas não forem as mínimas, restando-me somente ficar na ignorância e não ver a maior parte da produção fílmica atual.)
Feito o pequeno circunlóquio, volto a Godard: o que assisti dele, vi no cinema. Ver um filme no cinema, experiência epifânica, sociológica e profundamente humana.
Um dia, acho que lá por 1997, passou Para sempre Mozart (1996) na Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). Confesso que o filme me causou certo embaraço e confusão, mas gostei, afinal qualquer alusão a Mozart sempre me agrada (alô, Rudinei!). Era o primeiro Godard que via, com sua narrativa descosida, e na saída, ainda meio tonto, encontrei Zé Luís, porto-alegrense que era meu colega no Mestrado em Teoria da Literatura na PUCRS. Ele era da “casa” (isto é, de Porto Alegre), estava pois, eu achava, acostumado a ver filmes do Godard no cinema, não um interiorano como eu que pegava no cinema só a rapa do tacho, alguma coisa pelo videocassete e muuuuita coisa pela TV (quantas vezes fiquei acordado para ver a Sessão Coruja?). Rapidamente troquei palavras com ele na saída. A partir daí, tenho no Zé um amigo, com o qual há sempre assunto para a conversa, desinteressada ou interessada. Um cara que vai ver Godard no cinema, bom sujeito é. Ele deve ter pensado o mesmo de mim, tanto que até hoje a amizade continua. Graças a Godard? Talvez.



Uma outra vez, acho que lá por 1998-1999, vi o anúncio de um festival de Godard na CCMQ. Era época de muito estudo e pesquisa, dissertação para terminar, trabalhos, disciplinas, sempre alguma coisa pendente. O mundo acadêmico, doce por um lado, terrível por outro. Mas pensei: é um festival do Godard! Quando que vou poder ver filmes dele assim, de novo? Lembremos que era uma época pré-Internet, que baixar filmes e You Tube eram coisas de um tempo muito distante, talvez para meus netos.
Bom, aí, nesse festival, consegui ver:
O desprezo (1963) – Brigitte Bardot no auge. Godard e as suas belas atrizes... Gostei muito, até porque filmes metalinguísticos que abordam o mundo do cinema sempre me conquistam. Na verdade, depois pude constatar, O desprezo era uma narrativa até bem “normal”, levando em conta os padrões godardianos.



Alphaville (1965) – filme de detetive misturado com ficção científica. Estranho.
A chinesa (1967) – adorei esse filme, embora a confusão estabelecida na minha cabeça. Em tempos de FHC, pré-Lula, em que talvez ainda fizessem sentido reuniões para discutir Mao, o filme causou um nó na minha cabeça esquerdista (hoje, ela ainda é), com a presença certeira da ironia do diretor, sempre desconstruindo aquilo que a princípio consideramos indiscutível.
Me lembro que nessa fase minha alma e meu coração estavam quase todos encharcados nas lides acadêmicas, então talvez não tenha aproveitado esses três títulos como poderia ou deveria. Queria rever todos, e mais outros, na telona.
Depois, num ano que não sei mais precisar, li que a Sala Redenção da UFRGS passaria Acossado (1960) num dia qualquer, dento de alguma mostra. Bah, o primeiro longa do enfant terrible, com Seberg e Belmondo. Tinha que ver isso. Arrumei minha vida de estudante de pós-graduação e lá me fui. A cópia era ruim, mas a película, com seus chiados e riscos, marcou fundo, com as inovações da gramática cinematográfica que o diretor trazia à época, com a atitude de desbunde proposta pelas personagens, as quais circulavam pela atmosfera libertária parisiense da década de 1960.



Passaram-se muitos anos, 2009, talvez; eu estava em Lisboa para um evento e tinha duas tardes livres. Passei pela Cinemateca Portuguesa, para ver a programação, pois sempre havia coisa boa na casa de cinema lisboeta. Qual a minha surpresa: amanhã passava O demônio das onze horas (1965), a tradução brasileira maluca para Pierrot le fou, com, de novo, Jean-Paul Belmondo. Fui com certa ansiedade ver o filme. Uma quinta, ou terça-feira, não lembro, às 15h, quem estaria presente para ver Pedro, o louco (título português)? Será que só eu pagaria ingresso para ver mais um Godard da minha vida? Para minha secreta alegria, o cinema estava cheio, repleto de portugueses, ou não, sequiosos para ver o filme – o discreto charme da telona, esse obscuro objeto de desejo. Assim, para sempre, e intimamente, respeito o público de cinema português. Podem me perguntar sobre o filme, que responderei que pouco lembro dele, mas na hora, no momento, adorei, talvez seja aquele que mais gostei do diretor. Coisas da recepção cinematográfica, coisas de se ver um filme com sala cheia, ainda mais numa cinemateca.



Agosto de 2015. Godard estava distante de minha vida, talvez nem me lembrasse dele. Primeiro filho, diversas atividades acadêmicas, sempre tanta coisa para fazer, sempre na correria. Estávamos no Shopping Pelotas para comprar qualquer coisa, depois almoçar. “Deixa eu pegar o folheto com a programação”. Acostumado com o trash hollywoodiano de sempre, quase não acreditei quando vi num canto da folha: “Adeus à linguagem 3D. Legendado. Todos os dias. Sala 4”, com a seguinte sinopse: “Um homem e uma mulher vivem um relacionamento marcado pela falta de comunicação, já que cada um fala uma língua diferente. Então, o cachorro deles decide intervir”. Fiquei pasmo, não com o deliciosamente tosco, incorreto e inverossímil resumo acima transcrito, mas com o fato de estar passando o filme 3D do Godard ali. Pedi à Marina, pois achava que o filme só ficaria uma semana em cartaz: “Liga para a tua aluna que fica de babá do Ramiro nos fins de semana e vê se ela pode hoje, pois aí já compro os ingressos agora mesmo” (o filme era de noite). Sim, a Melissa podia, e fui comprar as entradas. A moça da bilheteria, quando falei que queria dois tíquetes para o Adeus à linguagem, me comentou que, a pedido da direção do cinema, tinha que avisar que o filme era “independente”, ou seja, o som e a imagem apresentavam uma qualidade abaixo do que se esperava. Ri interiormente com o aviso, pensando se a moça conhecia Godard; se não conhecia, não era culpa dela, afinal, quem conhece Godard?



Agora, aquilo para o qual ela alertou é exatamente o grande ganho do filme, irritante na sua distorção de som e imagem. As cenas, em 2D e 3D, vão se acumulando e se atravancando no mesmo espaço, e o espectador vai ficando impaciente e incomodado, não sabendo se é culpa da projeção, da cópia, dos malditos óculos 3D. Não sei se é porque já uso óculos no dia a dia, mas não gosto de filmes 3D, pois aí se fica com seis olhos! O 3D não acrescentou ainda quase nada à arte cinematográfica, a não ser a histeria por parte dos diretores em jogar coisas em nossa direção – a exceção à regra é Pina, de Wim Wenders. Gravidade, As aventuras de Pi e A invenção de Hugo Cabret sobreviveriam muito bem sem o 3D a eles impingido, embora existam nesses filmes algumas soluções interessantes e belas imagens a partir do uso da tridimensionalidade.
Adeus à linguagem (2014) inova ao investir em ser assumidamente um antifilme, que causa estranhamento e desconforto ao espectador, ao fazer do 3D elemento disfórico e distópico, e não a salvação anunciada de uma arte, a sétima, ameaçada pela pirataria e pela insegurança das ruas. O seu roteiro às avessas ajuda a mostrar a incongruência de se contar histórias num mundo cada vez mais violento e sem espaço para o diálogo. A projeção desfocada dá adeus à linguagem cinematográfica, ou melhor, a todas as linguagens que poderiam contar as histórias ainda passíveis de serem narradas, pois já não há mais línguas, símbolos, escritas para tanto, até porque o nível de incomunicabilidade das pessoas, alerta o filme no limite, levará a humanidade à imobilidade e à passividade. O cachorro da ficção (na verdade, o cão de estimação de Godard), como a Baleia em Vidas secas, parece o ser vivo mais atento a tudo à sua volta.



Que me recorde, ninguém saiu do cinema pelo meio, e nem havia tão pouca gente assim na sala, isso já é um ganho num filme tão fora do “esquema”. Deveriam ser aqueles fiéis citados por Juremir, eu incluído. E há mais alguns por aí, pois o filme ficou mais uma inacreditável semana em cartaz, em meio a Pixels e Missões impossíveis. Do que será a “culpa” por tanto “sucesso”? Do 3D, com seu apelo comercial, que na verdade é uma jogada do mestre francês, uma verdadeira “pegadinha” para cima dos desavisados; da temática que envolve cachorro, sempre um animal com um chamativo forte junto ao público; do chamariz da nudez; do fato de ser um filme pequeno (1h10), sem perigo de cansar, portanto?
Bons tempos, em que se precisava sair para a rua para ter acesso a determinadas aspectos culturais. Espera aí, será que são bons tempos, ou maus tempos? Hoje tem-se tudo a um clique no mouse ou a um toque na tela. Para mim, isso é muito bom, isso é muito ruim.
Hoje já não moro mais em Porto Alegre, será que lá ainda passa Godard em festivais que duravam duas ou três semanas? E na velha capital portuguesa, as tardes ensolaradas são preenchidas por aposentados e estudantes assistindo a um Godard do século passado?



sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Quando explode a vingança, de Sergio Leone, e o homem despedaçado


Daniel Baz dos Santos

Quando explode a vingança (1971) foi concebido para ser dirigido por um norte-americano. Nomes como Peter Bogdanovich e Sam Peckimpah foram cotados para coordenar a produção e, ainda que confie na capacidade criativa de ambos (e certas passagens de Meu ódio será sua herança remetem em certa medida ao filme aqui analisado), não posso deixar de sentir-me alegre pelo projeto ter chegado a Sergio Leone. O diretor estava no auge da sua carreira, após ter feito sua obra maior Era uma vez no oeste e consagrar-se como um dos maiores diretores de todos os tempos, adorado pelo público, mesmo que rejeitado por imensa parte da crítica especializada. O filme, de fato, deveria integrar uma segunda trilogia leoniana e receberia o título de “Era uma vez na revolução”, central, portanto, no projeto de reinvenção do diretor, ávido por expandir suas técnicas narrativas e o conteúdo de seus filmes. De acordo com Douglas Kellner: “A violência dos filmes de Leone estava aumentando mais e mais (e a renda de bilheteria também!) afinal, esse era comprovadamente o segredo de seu grande sucesso. Em contrapartida, o diretor procurava, astutamente, equilibrar sempre aquela violência com toques de ironia, farsa e comicidade, lembrando ao público que aquilo tudo não passava de um filme.”
Quando explode a vingança apresenta Rod Steiger no papel do mexicano Juan Miranda. No início do filme, ele aguarda na beira de uma estrada e, quando vê uma carruagem de luxo vindo em sua direção, decide pedir carona a ela. Este início se relaciona com as outras “cenas de espera” que abrem muitos dos filmes de Leone, como a chegada de determinado veículo a um lugar específico em Por uns dólares a mais e na magistral sequência inicial de Era uma vez no oeste, ou a vinda aguardada de certo personagem nas primeiras tomadas de Três homens em conflito. Juan sobe na carruagem a contragosto dos burgueses que a integram. Estes não querem receber um mexicano miserável em seus aposentos e caçoam da pobreza do sujeito, chamando-o de “animal” e questionando sua paternidade.



Toda esta sequência apresenta uma série de elementos que revelam a mudança de rumos na proposta cinematográfica do diretor. Primeiramente na sua relação intertextual com o maior clássico do faroeste: No tempo das diligências, de John Ford. Assim como na obra de 1939, aqui o ambiente interno do veículo funciona como microcosmo do universo social e seus conflitos e estabelece um contraste brutal entre o exterior desértico e o interior extravagante do transporte. A diferença central aqui é que a sociedade não tem mais chance de redenção. Todos estão em franca decadência moral e, por isso, terão seu percurso interrompido drasticamente. No entanto, a importância da cena é muito mais estilística. O espectador que conhece a filmografia de Leone (e o diretor adorava sinalizar para a própria obra) aprendeu a reconhecer o jogo preciso estabelecido pelo diretor com o uso dos planos detalhes, especialmente em suas cenas de duelo. Num primeiro momento, eles serviam como contraponto ao ambiente vasto das montanhas rochosas e canyons que marcam o gênero. O corte abrupto, do muito pequeno para o muito grande, ajudam, nesse sentido, a estabelecer um conflito de interesses entre homens rústicos que são a um só tempo o produto e os produtores do cenário no qual caminham, passivos e ativos no drama e, dessa forma, inicialmente ambíguos (como o vilão vivido pelo símbolo heroico Henry Fonda em Era uma vez no oeste).





A ideia do close como realce da expressividade do ator, presente na gramática clássica do cinema, nunca esteve no modus operandi leoniano. Basta lembrar seu famoso “elogio” a Clint Eastwood: “Gosto de Clint porque ele tem apenas duas expressões. Com chapéu e sem chapéu.”. As tomadas fechadíssimas têm ainda o propósito narrativo básico de acentuar o suspense, elaborar o momento que antecede a explosão de violência que, sabemos, inevitavelmente virá, como se o instante antecedente a ela fosse ainda mais importante do que os disparos e mortes consequentes. No entanto, utilizados em contextos distintos ao longo da carreira do diretor, os recortes limitadíssimos nos rostos dos atores, notadamente nos olhos, estabelecem um recorte na figura humana que transcende a metonímia, já que nos impede de ter acesso ao valor total das figuras, que tem sua integridade fragmentada pela lógica da montagem. O rosto, os olhos, a mão, o revólver, cada um destes elementos permanecem dotados de seu próprio universo particular. O maior manifesto desta lógica é o duelo final de Três homens em conflito. Quando o personagem de Clint Eastwood finalmente dispara, um plano abertíssimo mal permite que vejamos os personagens após a conclusão do conflito, sugerindo que o resultado do duelo (ou seja, aquilo que interessa ao enredo) situa-se em um conjunto de signos diferentes do mundo fetichista anterior ao combate propriamente dito. Por esta via, Leone estabelece um olhar irônico ao papel da violência na resolução dos dramas humanos, já que os indivíduos que a propagarão são amontoados cubistas de partes descontextualizadas e desconexas, íntegras apenas graças à magia da edição.



É esse conjunto pessoal de códigos que o diretor irá subverter na cena da carruagem em Quando explode a vingança. Nela, os famosos planos-detalhe são utilizados para ressaltar as bocas e os olhos dos terríveis membros da sociedade, quanto eles ofendem e vociferam contra Juan Miranda. Além disso, alguns dos personagens se alimentam durante toda a sequência e os closes permitem que vejamos seus lábios e dentes enquanto mastigam, criando uma associação natural entre o fastio e a maldade. Essa relação ajudará a criar o tom romântico dos revoltosos paupérrimos que serão apresentados depois. Leone parece dizer que, neste seu novo filme, esta é a violência que realmente importa, dos afortunados contra os miseráveis, e ela não tem nada de cool, o que explica a transgressão operada nos limites dos próprios mecanismos estéticos canonizados por ele, permitindo, assim, que sintamos asco pelas figuras e desejemos a punição que elas receberão a seguir.
Isso porque Juan é na verdade o líder de um bando de criminosos mexicanos que tomou a carruagem para poder roubar os seus pertences, sendo nisso bem sucedido. A cena na qual Juan se revela o líder é contígua às imagens dos nobres agora nus e sem a altivez anterior, ou seja, a edição trata de demonstrar que a mudança de sorte de um (o bandido que prospera) exige o final trágico do outro (os ricos humilhados). Por fim, o plano que revela Rod Steiger metamorfoseado, de pobre mexicano inofensivo, para o terrível e poderoso bandido sinaliza para outro momento de No tempo das diligências, o nascimento do fora-da-lei moderno, quando John Wayne surge na tela.



Logo, Juan conhecerá o segundo protagonista do longa, o terrorista irlandês Sean Mallory, ou John Mallory, vivido por James Coburn. Ambos irão se unir em prol da revolução mexicana no final da primeira década do século XX. Juan torna-se um herói revolucionário sem querer, quando Mallory, cada vez mais interessado pelos interesses da revolta popular, o instiga a assaltar o banco de Mesa verde. Motivado pela oportunidade de riqueza, o bandido aceita ingressar no roubo, mas se surpreende ao descobrir que, ao invés de dinheiro, os cofres guardavam os prisioneiros do governo, em um simbolismo fácil, mas eficaz. A relação conflituosa entre os dois protagonistas é o início de uma forte amizade, dinâmica presente em outros filmes do diretor. A entrada de James Coburn (que só aceitou o papel após ouvir de Henry Fonda que trabalharia com o maior cineasta de todos os tempos) é outro simbolismo funcional que muitos podem considerar deselegante. Dentro de seu sobretudo, o terrorista estrangeiro carrega quilos de dinamite e litros de nitroglicerina, o que o converte em uma pequena alegoria da revolução, já que os vários interesses que a envolvem (“revolution is confusion” – diz certo personagem) transformam todos os envolvidos em bombas em potencial: “Quando eu cair, metades deste maldito país cai comigo”- afirma Mallory.



O ideal de adquirir ouro de Juan é tratado como um sonho deslocado da realidade social mexicana. No momento em que ele conta seus interesses a Mallory, ambos se alimentam em cadeiras luxuosas posicionadas na beira de um desfiladeiro, imagem que se parece muito com um deslocamento de tipo surrealista e debocha, em certa medida, dos objetivos do mexicano. Algumas transferências dessa ordem serão operadas em outros momentos do filme, como o leitor no trem que se mostra mais preparado que os próprios bandidos, ou mesmo as cenas “foras do lugar” que contam o passado de Mallory e ajudam a construir o caráter e as motivações do sujeito. Aqui Leone está reciclando a fórmula presente em Era uma vez no oeste, quando entendemos as intenções vingativas do Gaita, mas em Quando explode a vingança, o recurso nunca atinge a mesma força presente em seu predecessor. No entanto, estas “transferências” de sentido são coerentes com a mudança de função dos protagonistas que são retirados de seu rumo natural. Algumas delas se manifestam na forma de chistes cinéfilos, como o fato de Juan batizar um de seus filhos de Napoleão, quando sabemos que Rod Steiger viveu o herói um ano antes em Waterloo.



Outro componente essencial na composição da história e que demonstra a competência do diretor italiano é a presença das frestas em vários ambientes, por onde muitos personagens veem o mundo. Elas estão espalhadas por todo o filme, a exemplo da sequência final, passada dentro da locomotiva. Estes momentos revelam a natureza enviesada do olhar dos protagonistas. As visões destes homens estão sempre irremediavelmente comprometidas, tornando-os incapazes de ver o todo que os cerca. Sua posição está, portanto, à margem do que é visto, alienada daquilo que observam e os situa aquém do espaço das pessoas comuns. Além disso, o recurso trata-se também de outra forma de entender a presença dos closes extremos nos olhos dos heróis, sendo sua contraparte estilística. A redução do mundo pela forma como o sujeito o olha é complementada pela diminuição do homem ao ato de olhar. Seria essa uma forma de estabelecer a natureza metanarrativa de alguns planos fechados de Leone, já que nós, os espectadores, também ambicionamos este espaço edênico, protegidos no escuro, de onde podemos observar a violência sem dela sofrer as consequências. Esta impossibilidade foi retratada no primeiro western de todos os tempos (considerado por muitos o filme que inaugura também o próprio cinema) O grande roubo do trem, que termina com o bandido atirando contra a câmera, vitimando também o público e revelando, por extensão, o dispositivo ilusório da sétima arte.





Outra forma de entender estes procedimentos seria aliá-los a certas decisões da edição, especialmente na cena em que o assalto ao banco é iniciado. A montagem paralela brinca com as idas e vindas da visão subjetiva para a objetiva, ou se situa em pontos de vistas mistos, como quando focaliza o relógio que Mallory observa, e erra pelos espaços, apresentando os reflexos dos lugares e dos seres em janelas ou outras superfícies envidraçadas. Este conflito de interesses, que torna o mundo um caleidoscópio substancioso de intenções, é parodiado no momento em que Juan olha a movimentação do vilarejo através dos “olhos” do governador que estampa cartazes pela cidade. Mais uma vez, em toda a longa sequência há o ideal da suspensão que precede os disparos e explosões.



A respeito disso, é necessário notar o olhar particular de Leone a respeito da função do revólver (e das armas de fogo em geral) em seus filmes. O revólver em sua obra é tudo menos o objeto físico, servindo antes como uma extensão da vontade dos heróis, uma espécie de vara de condão mágica, que impõe ao mundo aquilo que quem o porta almeja. No cinema de Sergio Leone, o revólver faz com que as pessoas parem de caminhar ou se ponham em movimento (basta dar dois ou três tiros na frente ou atrás do alvo), caçoa e graceja dos oponentes (veja-se a apresentação do personagem de Clint Eastwood em Por um punhado de dólares ou no “duelo do chapéu” em Por uns dólares a mais). A arma pode também abrir portas e mesmo servir de prisão para uma irritante mosca (no início de Era uma vez no oeste). Torna-se, assim, uma forma de projetar o desejo dos homens (e aqui seu simbolismo fálico parece ser central) na realidade, sendo a cena na qual Juan afasta um cadáver que o perturba do espaço em que se encontra com tiros de metralhadora a mais reveladora desta sua função. Essa onipresença do objeto é usada até mesmo de forma metanarrativa, já que, nos letreiros dos filmes de Leone, uma série de disparos escrevem ou retiram os nomes dos crédito dos filmes, brincadeira reveladora do papel das armas de fogo no imaginário do diretor.
No entanto, esta reflexão serve de base para o entendimento de uma das principais cenas de Quando explode a vingança: o momento em que Juan Miranda entra no esconderijo dos seus companheiros e encontra todos mortos. Enquanto ficamos vendo os corpos, com auxílio da câmera que os mostra lentamente, ouvimos os disparos de metralhadora de Miranda que busca vingança. Sendo assim, a violência presente na retaliação (e que é o centro deste e da maioria dos plots da cinegrafia leoniana) está artificialmente desligada do sentimento catártico que ela poderia atingir, já que somos obrigados a observar os corpos dos adultos e crianças que jazem no chão durante um longuíssimo período. Os sons que ouvimos nada têm a ver com as marcas de balas que vemos. É emblemático também que a cena ocorra no interior de uma gruta, discordante com os espaços abertos presentes no resto do filme, já que estamos diante de uma manifestação particular de desencanto e desilusão a respeito da solução dos dilemas trazidos pelos protagonistas, ideia articulada com o caminhar errático e desanimado de Mallory ao fim da sequência, carregando um revólver inerte e de ponta cabeça entre os dedos.




“A revolução é um ato de violência”, diz a frase de Mao Tsé-Tung citada no início do filme. Com base nisso o final da obra é legitimamente em aberto. Uma pausa artificial no rosto de Juan revela um movimento social que não tem ponto final pacífico. O último western de Leone se dá ao luxo de optar pela não finalização esquemática da intriga e nos abandona diante de mais um rosto imenso, recortado de contexto, uma imagem típica do diretor, mas que, talvez pela primeira vez, já não nos seja suficiente. Ao invés de atirar em nós, como o fora-da-lei de O grande roubo do trem, Juan Miranda nos encara e pergunta: “E eu?”, repleto ainda de mistérios, alienado do todo que o cerca, despedaçado e enigmático para si mesmo. 

domingo, 20 de setembro de 2015

As mínimas histórias de Carlos Sorín

Daniel Baz dos Santos

Tem coisas que são adiadas por bem. Sempre acompanhei o cinema latino-americano com entusiasmo. Autores como Glauber Rocha, Jodorowsky, Lucrecia Martel, Tomas Gutiérrez Alea, Juan Jose Campanella, Pablo Larraín, entre outros, me comoveram profundamente com seus filmes durante boa parte de minha vida ou me desafiaram a compreender seu código, emancipando-me nas duas situações. No entanto, nunca havia assistido Carlos Sorín e não há razão lógica para esta falta. Sabia do sucesso de “Bombón, el perro” e da trajetória do renomado diretor, principalmente a partir dos anos 2000. Contudo, somente neste 2015, tão presente e já tão longínquo, dediquei-me a assistir a obra do mestre argentino. E que alegria de ter esperado!
A crítica tem apontado com acerto que Sorín é o diretor (ao menos um dos) das coisas pequenas. Os conflitos que preenchem seus filmes transitam na ordem do “homem comum”, grande imagem do cinema argentino como um todo, popularizada pelo fenômeno quase onipresente de Ricardo Darín, que vive este tipo com intensidade em diversos trabalhos (mas, estranhamente, nunca atuou em um filme de Sorín). A trajetória cinematográfica do diretor é atípica. Depois do pouco conhecido La película del rey, conseguiu orçamento para filmar Evermile, New Jersey (1989), que conta com a presença de Daniel Day-Lewis em seu elenco. Já em 2002 o diretor volta com um novo filme, desta vez dentro do “boom” conhecido como Novo Cinema Argentino (NCA), ainda que muitos autores reclamem deste rótulo, como acontece com a também polêmica “Retomada” brasileira.



Sua obra mais emblemática talvez seja História mínimas, na qual somos apresentados a três enredos distintos e complementares. O primeiro se refere a Don Justo, que mora com o filho no armazém que um dia foi gerenciado por ele, e que agora pertence ao seu primogênito. O idoso decide viajar de Fitz Roy até San Julian para encontrar o cão que havia perdido tempos atrás, contra a vontade de seus familiares. A segunda narrativa trata de Roberto, um vendedor ambulante cuja vida é pautada pela filosofia de manuais de autoajuda do tipo “Como ser bem sucedido”. Este também está em franco deslocamento, com o intuito de dar um bolo de aniversário ao filho da viúva de um ex-comprador por quem está apaixonado. Por fim, acompanhamos Maria Flores, uma dona de casa que também deve ir a San Julian, por ter sido sorteada em um programa de televisão, onde as pessoas podem ganhar, girando uma roleta, um multiprocessador, entre outros prêmios de menor monta.
A partir das histórias expostas é possível perceber que o gênero Road movie é uma característica forte no trabalho do diretor, presente também em O cachorro. Seu universo apresenta um repertório amplo de imagens do interior argentino, que, certas vezes, beira o documental (caráter realçado por sua decisão de usar “não-atores”, ou “quase-atores”, como já explicou em diversas entrevistas). Nesse sentido, Sorín é herdeiro dos "travelogues", os filmes de viagem que mostravam imagens exóticas entre os anos de 1890 e 1920. No entanto, o “filme de viagem” tradicional é irmão de obras como “Viagem à lua”, de Méliès, onde partir para território distante é fantasiar e se surpreender. Esta mescla do registro factual e do fictício rendeu uma obra-prima do cinema brasileiro: “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, documentário que, durante sua produção, tornou-se um exercício de ficção propriamente dita (já que, como sabemos, o gênero documental usufrui das mesmas técnicas compositivas que seu cinema irmão). Além dessa ambiguidade discursiva, o road movie em Sorín respeita aquela oscilação própria do gênero, revelada primeiramente por David Laderman, entre os valores conservadores da sociedade e o desejo de rebelião. Interessante que uma reflexão operada no interior do cinema norte-americano sirva tão bem ao presente caso argentino (e também no brasileiro, se pensarmos a obra de artistas como Walter Salles).



A busca do cão (tópico presente também em O cachorro) é o dado simbólico mais explícito deste descolamento, motivador da descoberta do próprio lugar no mundo e de uma maior conscientização a respeito do universo ao redor. Por esta via, a primeira cena do filme é metaliguística, pois representa o aprendizado do olhar e a adequação do ponto de vista pessoal ao resto do mundo, mimetizada pela ida de Don Justo ao oculista. Na cadeira do exame de visão, com aquela engenhoca sinistra diante dos olhos, o velho exclama diante do resultado negativo: “Mas Doutor, eu nunca dirijo na estrada. Só quero a carteira para dirigir na cidade”, o que prova o sedentarismo atual do protagonista. Os créditos iniciais da obra são mostrados tendo ao fundo os painéis fora de foco que o homem observa (informações como o nome do diretor e os patrocinadores aparecem, contudo, nítidos em primeiro plano). Esta indefinição do universo, opaco e confuso, também será operada no interior do trajeto desenvolvido por Don Justo.



Na próxima cena protagonizada pelo personagem o vemos diante do mercado que o filho herdou, observando a estrada, enquanto saboreia o seu chimarrão. Ela aqui é ainda um potencial, elaborado pelo enquadramento e o desejo de aventura representado pelos tênis de alpinista que o senhor calça. Quando tenta conversar com filho sobre sua empreitada, este está arrumando a antena parabólica da residência, comentário irônico a respeito do sedentarismo das personagens, desinteressadas pela epopeia real e hipnotizadas pelas ondas de rádio e TV. Não por acaso uma de suas três personagens principais conhecerá o funcionamento de um programa de televisão e muitos dos estabelecimentos mostrados pelo filme possuem um destes aparelhos ligados (e apresentam novelas, o carnaval e propagandas de diversos tipo). O desejo de novidade é também bivalente em um universo subdesenvolvido e encontra o seu contraponto na cena em que as velas novas em um bolo não podem ser apagadas, pois voltam a acender depois de sopradas, uma “tecnologia” inútil e desconcertante que simboliza a relação das personagens interioranas com os ideais modernos. Em resumo, se a estrada é uma imagem de aproximação com o novo, o filme explora essas outras novidades que parecem pôr em diálogo a lógica provinciana e os produtos "de fora", síntese que para muitos é essencial no entendimento da latinidade.



Maria, contudo, irá trocar a multiprocessadora por uma janta, já que não tem dinheiro para ficar uma noite a mais na cidade. Na cena em que a personagem ganha o prêmio, não vemos nada além de um close fechadíssimo em seu rosto e o encantamento com o circo televisivo, situação que se processa muito bem em outros filmes contemporâneos, a exemplo do chileno “Tony Manero” (em que um personagem perde tudo para participar de um concurso televisivo de imitações de John Travolta) e do italiano “Reality – a grande ilusão” (no qual um personagem tenta a todo custo participar do Big Brother).



Além disso, os espaços de intimidade, repletos de imensa cortesia, principalmente no périplo de Roberto para tentar consertar o nome errado que pôs no bolo de aniversário, se contrapõe ao espaço aberto da estrada. O trajeto deste personagem incorpora uma das grandezas de nossa tipologia enquanto comunidade subdesenvolvida, ou seja, a improvisação, a necessidade de resolver problemas com aquilo que, ainda que insuficientemente, temos à disposição. É nesse tratamento da vida comum que temos a dupla face do realismo de Sorín. Segundo Glauber Rocha, em clássico texto, se Visconti discursa dialeticamente sobre um tema qualquer, Rosselini costuma lançar perguntas a ele. Ainda que não concorde integralmente com a redução proposta pelo cineasta baiano a respeito dos autores italianos, é frutífero relacionar este último, que não buscava mais a compreensão materialista da história, com Sorín, para quem a realidade carece de lógica e, por isso, é retratada com estranhamento. As coisas em dados momentos são novamente vistas e não apenas “reconhecidas”, como se objetos mundanos (assim como as pessoas que os possuem) pudessem ter um valor simbólico nunca pensado. Muito desse impacto é incorporado à experiência do leitor na percepção que as personagens também adquirem (sempre parcialmente) do mundo ao seu redor, o que explica os inúmeros closes em itens do cenário aparentemente desimportantes. O maior manifesto desta atitude é o início de “O cachorro”, na qual o protagonista tenta explicar para um grupo de operários que o cerca o porquê de sua faca artesanal valer o valor cobrado (o que não convence os possíveis compradores).



Isso também está em dia com outra opinião de Glauber Rocha, ao falar no percurso do cinema de Buñuel, Vigo e Rosselini, cuja súmula marginal seriam a liberdade, o misticismo e a anarquia, únicas formas de fugir do espetáculo. Sobre esse cinema defende que: “Seu estilo é uma ideia em movimento – a liberdade realista desta ação é seguida por um olho atento aos detalhes: a ducha de água quente e fria, irregularmente, jamais permitindo que o espectador pare de pensar”. O mesmo pode ser dito do repertório imagético de Sorín em vários pontos de seu trabalho.
A cena final  de "Histórias mínimas" se passa dentro de um ônibus com alguns dos personagens voltando para a casa, em uma síntese entre intimidade e estrada. Maria, antes de o filme terminar, se olha em um espelho, como se finalmente se reconhecesse, sendo esta a última alegoria do filme. Ismail Xavier em “A alegoria histórica”, explica que “O surgimento de uma concepção de história como um processo ininterrupto de produção, mudança e dissolução de sentidos acabou por desautorizar antigas concepções de signos e práticas discursivas como elementos capazes de produzir interpretações estáveis e universalmente válidas, relacionadas orgânica e necessariamente às verdades essenciais da vida. A cultura moderna, perseguida por uma noção radical de instabilidade, parece condenada a explorar as implicações do fato e que os significados – notadamente nos novos contextos culturais de combinação de signos – podem ser esquecidos, deslocados e retorcidos em face das forças históricas e sistemas de poder. Essa nova consciência de instabilidade apenas reforça uma antiga percepção do caráter problemático dos processos de significação – percepção que atualmente nos distancia do paraíso perdido das linguagens transparentes.” Sorín é inteligente ao mostrar o duplo espelhamento da consciência que parece se reconhecer, ainda que de forma parcial e refratada, e apostar nesta representação autoconsciente e nada ingênua para repensar o discurso que produzimos acerca de nós mesmos. É por este olhar humanamente preciso que agradeço a oportunidade de ter conhecido o trabalho do diretor com maturidade o suficiente para entender parte de sua grandeza, sustentada por seres mínimos como eu.


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Dá série “À espera de ‘Hateful Eight’” – 2

Os dois textos que se seguem foram escritos há mais de dois anos, quando do lançamento de Django livre, de Quentin Tarantino. São postados aqui dentro da série “À espera de Hateful Eight”, para preparar o público para o novo filme do diretor norte-americano, que será lançado até o final do ano. Eu escrevi o primeiro, a partir da minha visão do filme; Daniel escreveu o texto subsequente, uma espécie de réplica que não teve uma tréplica, já que em geral concordei com quase tudo de sua brilhante resposta, menos a questão da janta – continuo a sustentar, embora nunca tenha revisto o filme, que é uma cena que precisava de uma melhor resolução. Um e outro elemento dos dois textos estão desatualizados, mas foram mantidos, em respeito ao espírito original do tempo da escrita. Boa leitura, Mauro.


Comparando Django

Mauro Nicola Póvoas

Aqui quem fala é um fã quase de primeira hora de Quentin Tarantino, que já escreveu sobre seus filmes, que possui os filmes dele em DVD em casa, que tem livros sobre ele e que o defende daqueles que veem nele quase que apenas um diretor que abusa de uma perigosa estetização da violência. Lembro-me, nos idos de 1994, saindo do Cine 7 de Setembro, no Calçadão de Rio Grande, um tanto estupefato por Pulp fiction – Tempo de violência (PF). Não conhecia ainda Cães de aluguel (CA), seu primeiro filme, mas pensei: “Esse cara veio para ficar”. Jackie Brown (JB) foi mais ou menos uma decepção, mas o desbunde da exuberância barroca de Kill Bill (KB) (considerando os dois volumes como um filme só), seguido do impecável Bastardos inglórios (BI), deixou claro que o homem era um gênio do cinema.
Agora, finalmente, no dia 16 de março de 2013, consegui assistir a Django livre (DL), no Cine Dunas. Qual a minha sensação hoje, quando escrevo? Decepção não, que é forte, mas certo incômodo, um déjà-vu. Pode parecer que não gostei do filme, pelo contrário, DL é bom, até porque o diretor já está no panteão daqueles que têm algo a dizer, que têm uma estética própria. Dos cineastas vivos, quem está ao seu lado? Poucos, Almodóvar, Allen, Herzog, Haneke, Von Trier, Lynch, e poucos mais.
Neste ponto, quero fazer a minha lista pessoal de preferência dos filmes do diretor nascido em Tennessee. Revi PF e JB há duas semanas; a cada volume de KB vi 2 ou 3 vezes no cinema; BI vi 2 vezes, uma no cinema, uma no DVD. À prova de morte (PM) vi recentemente, assim como revi há pouco Cães de aluguel (CA). PF continua a ter o frescor de 19 anos atrás, 1º lugar. KB vem em 2º, BI em 3º, DL em 4º, empatado com JB. CA e PM, por serem produções menores, não considero aqui.



E por que DL aparece em 4º nessa minha lista pessoal? Isso não é demérito, levando em conta que o filme mais fraco de Tarantino é melhor que 95% da produção mundial. Mas fiquei matutando o porquê, e vou tentar apontar alguns aspectos.
Já falei ali em cima de déjà-vu, acho que é mesmo isso. O filme retrabalha clichês do faroeste, mas ao colocar um negro e a escravidão como protagonistas, faz uma viragem espetacular em gênero tão clássico e conservador. Mas não é isso, a sensação do já-visto é em relação a outras obras do mesmo diretor, aí é que a coisa, na minha opinião, começa a ficar perigosa. Só Woody Allen consegue fazer, com sucesso, sempre o mesmo filme.
Muito do que está em DL emula algo já dito antes nas produções anteriores do diretor. A estética e o mito tarantinescos explicam-se por uma série de tópicos, que ao se repetirem podem estar chegando ao cansaço, pelo menos para aquele público mais fiel: a presença negra, a estetização da violência, a vingança, a repetição de algumas cenas pontuais, a homenagem a um subgênero, a trilha sonora, os atores, a longa extensão, as múltiplas identidades.



A presença negra já estava em PF e, especialmente, em JB, embora aqui seja trabalhada de forma mais incisiva, ainda mais que em conjunto com a estetização da violência, tópico sempre questionado em suas obras. Mas por estar associada aos negros, essa violência talvez encontre, dos filmes todos de Tarantino, a sua mais perfeita justificação (em BI, o nazi-fascismo também é uma justificativa e tanto para o banho de sangue impetrado), pois um negro matar brancos, depois das barbaridades cometidas por estes, não parece absurdo e até rimos e ficamos felizes quando a família de Candie e seus capangas são trucidados por Django – tudo dentro da lógica oferecida pelo filme, claro. Sobre o protagonismo, se em JB, desde o início, temos uma negra como personagem principal, em DL há uma paulatina transformação de Django em protagonista, tomando o lugar do Dr. King Schultz, até a morte deste, o que anuncia a proximidade da alforria definitiva e muito bem alegoriza um necessário de empoderamento dos negros na sociedade atual.
(Um parêntese: é preciso rever Manderlay, de Lars Von Trier, que também traz a questão escravocrata americana, aí sob a visão de um diretor europeu; o filme, tenho a lembrança, é bastante desconcertante.)
A dualidade gilbertofreyreana, da casa-grande e da senzala, fica muito clara na fazenda de Candie: de um lado, DiCaprio como um personagem revoltante, a casa-grande em pessoa, pertencente a uma aristocracia que em breve começará a entrar em decadência (e que não sabe falar Francês, ainda por cima!), de outro, Samuel L. Jackson, envelhecido pela maquiagem, na mais perfeita encarnação da senzala que se imiscui na casa-grande, “pegando”, por osmose, todos os vícios, preconceitos e tiques do sinhozinhos (por isso, insisto, é preciso rever Manderlay – essa relação perigosa e pegajosa aparece muito bem lá). Anotaria que talvez seja um pouco forçada a convivência tão íntima que Stephen, o personagem de Jackson, estabelece com Calvie Candie, levando em conta o desprezo e o rancor dos brancos para com os negros, e vice-versa.



A vingança já tinha sido explorada em KB, e como fazer algo que traga consigo o cheiro da novidade depois de a Noiva trucidar todos que a traíram? A vingança é um prato que se come frio, mas Tarantino em DL requenta o já requentado, e se não fica indigesto, fica o gosto de “Outra vez? Não daria para variar o cardápio?!” Tudo bem, a vingança é mesmo tema universal, garantia de emoção e de repercussão junto ao espectador, ainda mais que nas películas de Tarantino o assunto vem sempre regado com cenas sanguinolentas, manejadas com estética cinematográfica perfeita, herdada, por sinal, dos mestres Sergio Leone e Sam Peckinpah.
Em algumas cenas pontuais, também parece que estamos vendo o mesmo filme já assistido antes. A antológica e absurda cena no final de KB I, em que a Noiva trucida 100 vilões incautos, volta no tiroteio também antológico e absurdo em que Django acaba com a mansão Candie e com metade dos homens da propriedade. Já as ótimas cenas das conversas nas mesas de um restaurante e de um bar, em BI, reaparecem na conversa na janta em DL, um pouco antes do desmascaramento dos planos da dupla. Cumpre dizer que a cena em DL não é bem construída, não funcionando a contento, pois ficamos pensando por que Candie não manda matar os dois, mais Brunhilde, ali mesmo, na hora? A dupla não tinha nenhuma carta na manga que funcionasse como moeda de troca. Por outro lado, curiosamente, a fixação por pés femininos, presente em todos os filmes do diretor, não retorna aqui.



Mas é óbvio que um diretor como Tarantino nos dá algumas cenas muito boas, em DL, em especial aquelas que cutucam com vara curta os americanos e seu estilo de vida, as duas com o Dr. Schultz: no momento em que Django diz que por ser alemão, ele não está acostumado com cachorros comendo pessoas, algo normal para os americanos, e quando o Dr., indignado, pede que a tocadora de harpa interrompa a execução de Beethoven – poucas vezes uma cena mostrou tão cabalmente a questão civilização x barbárie; europeu x americano.
É mais do que sabido que Tarantino conhece tudo de cinema, fruto muito de seu trabalho, na juventude, numa videolocadora: desde o de arte europeu até o lixo Z saído das cloacas de Hollywood. Em especial este cinema-lixo o diretor conserva no lado esquerdo do peito, tanto assim que uma das chaves de leitura de sua obra é relacionar cada um dos filmes que fez aos diferentes subgêneros cinematográficos: CA e PF conversam com o filme de gângster/policial, do submundo de drogas, jogo ilegal, prostituição; JB deve o que é ao blaxploitation, gênero de filmes dos anos 70 que tinha os negros como produtores e receptores preferenciais; KB dialoga com os filmes de samurai e kung-fu; BI recupera os filmes de guerra; e DL repagina o faroeste, ou melhor, o sub-subgênero do spaghetti-western. Há ainda PM, filme assumidamente menor, que ele dirigiu entre KB e BI, um misto de road-movie e serial-killers – assim como o são Amor à queima-roupa e Assassinos por natureza, os quais não dirigiu, apenas assinou o roteiro. Pode-se pensar, como os detratores apontam, que realmente ele nunca traz nada de novo, mas somente, antropofagicamente, retrabalha e enverniza o velho, para as massas atuais?
A trilha sonora continua maravilhosa, com pérolas esquecidas, músicas que casam com as cenas à perfeição, num trabalho de garimpo em vinis velhos que, imagina-se, demanda um tempo considerável. É obrigação ter as suas trilhas sonoras em casa, embora, óbvio, as músicas funcionem melhor coladas às imagens. Mas até isso acaba cansando um pouco em DL, num uso da música que, embora perfeito, chama a atenção pela mesmice do efeito em relação aos outros filmes do diretor.
Até mesmo os atores repetem suas aparições, colaborando na sensação de mais do mesmo – S. L. Jackson, em PF e JB; Christoph Waltz (que ator!), em BI. Ora, Tarantino é ótimo diretor de atores, vide a ressurreição na carreira de Travolta, a partir de PF, e os dois Oscar de C. Waltz (BI e DL), que sob o comando de Tarantino torna-se um gigante. Aliás, a produção milionária com “cara” de filme B, que conta com os maiores astros americanos – Uma Thurman, John Travolta, Bruce Willis, Samuel L. Jackson, Robert De Niro, Brad Pitt, Leonardo DiCaprio, entre outros –, é um dos itens de culto em torno do diretor.



E mesmo um dado que pode ser considerado banal entra em cena, a extensão dos filmes – fora os dois de menor custo de produção, CA e PM, todos os outros passam, e muito, das 2 horas regulamentares de um filme. PF e JB ainda trazem um dado curioso: ambos possuem exatos 154 minutos; BI, 153min. Mas DL ultrapassa esses todos, com 165min., e o filme acaba trazendo certo cansaço ao espectador desavisado, em decorrência de algumas soluções de continuidade que talvez pudessem ser melhor exploradas – como as idas-e-vindas dos personagens pelos diferentes espaços do território americano. Uma explicação poderia ser que a montadora de todos os filmes anteriores do cineasta, Sally Menke, morreu em 27 set. 2010, ficando o encargo da edição de DL com Fred Raskin. Será que essa mudança acarretou alguma mudança de ritmo, levando em conta a importância da montagem para resolver, ou destruir, um filme?
Por fim, as múltiplas identidades por ele mostradas – mulher, negro, estrangeiro –, contrapondo-se ao american way of life, junto a um humor paródico que desconstrói a todo momento aquele clima que deveria ser “pesado”, garante a aura de pós-modernidade indispensável para uma obra que quer dialogar com o público e a crítica contemporâneos. Entretanto, mesmo o tom irônico e o recurso de dar voz ao Outro parecem um tanto esgotados em DL. Até porque, se há nos filmes de Tarantino a crítica ao americanismo expresso na sigla WASP (branco, anglo-saxão, protestante), também é inevitável lembrar que o diretor é sempre ambíguo, no culto que seus personagens demonstram à violência, às armas, ao dinheiro, ao individualismo, itens e hábitos tão arraigados nos Estados Unidos da América.



Esgotados, usei no parágrafo acima. Esgotamento. Eis a palavra que eu vinha perseguindo desde o começo deste texto. A impressão é que Quentin Tarantino chegou numa encruzilhada, momento em que é necessário escolher um novo caminho a ser trilhado – o da reinvenção – sob pena da estagnação, do esgotamento criativo. Não à toa, o próprio Tarantino entra em cena no final do filme, e metaforicamente explode, numa prova de que é preciso seguir outros rumos. Aparentemente, e só aparentemente, o que foi dito nesse parágrafo poderia ser contrariado com dois dados: o Oscar de melhor roteiro original de 2012 para Tarantino, por DL, quase 20 anos depois do primeiro, por PF, e o fato de o filme estrelado por Jamie Foxx ser um sucesso de público, pois é a maior bilheteria do diretor no Brasil  1.120.510 espectadores até 15 de março de 2013. Mas são dados relativos, se se levar em conta os interesses político-financeiros da Academia, mais do que os efeitos artísticos de suas escolhas, e o gosto médio, por vezes bastante duvidoso, do público.
Esgotamento. Eis realmente a palavra. Só pode mesmo vir o esgotamento, depois que, no final de BI, o Tenente Aldo Raine diz, do escalpelamento que terminou de fazer (e Tarantino também fala pela boca do personagem de Brad Pitt, sobre o filme que está, naquele exato momento, acabando): “Eis a minha obra-prima”. Realmente, BI é uma obra-prima (conforme já disse, para mim, não é o melhor de Tarantino, mas tecnicamente é impecável). Depois da perfeição, do auge, difícil a superação, e o nosso diretor, acomodado, preferiu se esconder no que ele já sabia e dominava. Como sair do labirinto do já-feito e testado com sucesso? Esperemos, com curiosidade e ansiedade, os lançamentos futuros. Todavia, levando em conta que o seu próximo projeto anunciado é Kill Bill III, fica a sensação de que talvez não venham, daí, ainda, grandes novidades.





Comparando meu Django com o teu

Daniel Baz dos Santos

Tentarei pensar tuas opiniões tendo saído muito satisfeito do cinema após assistir a Django livre, ainda que também não considere este o melhor Tarantino (Pulp fiction e Kill Bill também encabeçam minha lista). Tentarei também não deixar o fato de ser um aficionado por westerns (italianos, norte-americanos e até os “farofas” cariocas) influenciar demais minhas contribuições – quentes, pois vi o filme no dia 15/03/13 e escrevo em 17/03/13.
Senti que tua principal censura ao filme se apoia em certa fórmula que Tarantino parece repetir exaustivamente em Django livre e a sensação de “já visto”, que pode ser bem nociva à experiência cinematográfica. Concordo com a facilidade dos “clipes” musicais (mesmo que a cena da pré-Ku Klux Klan tenha me marejado os olhos pela referência a Griffith) e com o repertório de ideias reaproveitadas que elencas, ainda que tenha lido essas reincidências temáticas de forma positiva. Contudo, insisto numa mudança gritante, que insere este filme num fenômeno avesso à poética de Tarantino que conhecemos até então, ou seja, a linearidade. Talvez pelo fato de estar sem sua fiel montadora Sally Menke (grande responsável, entre outras cenas, pela genial abertura de BI), talvez por achar que estava na hora de investir em uma trama de formação e com forte carga histórica, utilizando as virtudes da cronologia, o diretor investe na sequência natural dos eventos, o que funciona muito bem para criar a tensão existente no enredo, visto que nunca sabemos como os demais personagens irão agir ao ver a insólita dupla protagonista. Guardar o “depois” para depois me parece ser fundamental neste filme e admiro Tarantino por ter aberto mão de uma das características que o consagrou.



Além disso, se não estão presentes certas constantes (como o fetiche com os pés), surgem novos elementos que passam a se tornar cada vez mais comuns em sua gramática. O primeiro exemplo traz de volta o olhar fetichista para as bebidas degustadas pelos personagens, enquanto acontecimentos importantes se desenrolam. Estava no leite oferecido pelo monsieur LaPadite a Hans Landa e retorna agora na cerveja servida a Django pelo caçador de recompensas. O pormenor enfocado intensifica o suspense, além de impedir que tenhamos acesso à verdadeira hierarquia semântica das sequências, já que o, aparentemente, desimportante ganha o primeiro plano.
Outro item que retorna é o uso das várias línguas utilizadas pelos personagens, central em BI (e acredito que iniciada na famosa discussão a respeito do royal with cheese em PF) e que volta como uma forma de esconder as várias camadas discursivas em torno dos conflitos vividos pelos personagens. Aliás, com respeito à origem nacional de cada um, achei genial o fato de um sulista revolucionário adversário de um alemão nazista em BI aparecer invertida, através das figuras do alemão esclarecido e libertador oponente do terrível senhor de escravos do sul dos Estados Unidos. E o experimento com diferentes idiomas também se articula com a encenação dentro da encenação, com as personagens tendo que assumir identidades fictícias (também já presente desde CA, em que Tim Roth aprende a representar um bandido para se infiltrar no grupo de criminosos).


O universo intertextual exposto pelo diretor também ainda me impressiona e faz valer anos assistindo a filmes de faroeste terríveis que poderiam representar muita vida jogada fora não fosse realizações como esta. O pastiche é uma conduta em Tarantino. A bricolage é a bengala poética de um mundo cheio de verossimilhanças. Basta lembrar que, em Kill Bill, faroeste (e a revolução de seguir um plano detalhe por um plano geral abertíssimo), filmes de Kung Fu (e o ato de mexer no foco da câmera durante a cena, comum nestes filmes), animes, e até melodrama, convivem no mesmo universo. Por isso, fico feliz que, quando Django aprende a atirar, surja uma referência à emboscada de Era uma vez no oeste. Ou que o projeto de Calvin Candie e sua “Mandingo fight” remeta ao Mandingo, o fruto da vingança, filme horrível, mas que tem o seu melhor aproveitado pelo cineasta. Ou que a ternura da convivência entre King e Django seja exposta em uma sequência ao som de “I got a name”, remetendo à cena mais meiga de todos os westerns, ou seja, a da bicicleta em Butch Cassidy e Sundance Kid. O interesse de criar um universo autoral orgânico de filme a filme se apoia no organismo já estabelecido de outros filmes. Dessa forma, Tarantino usa o recheio de filmes antigos para produzir a cuidadosa casca de suas produções. Mais do que isso, em Django livre, outras camadas são adicionadas as já usadas, como o cartunesco (Brunhilda tapa os ouvidos com a ponta dos dedos antes da explosão) e a cultura popular mais massificada e gratuita (Django fica de frente para a explosão, contrariando o chiste pop de que “cool guys don’t look at explosions”).



Fazendo um último comentário a respeito do intertexto, acredito que a releitura do original de Franco Nero (que faz uma ponta muito boa no novo filme) é eficaz. O que movia o personagem original também era a vingança, mas sua mulher já havia sido morta, luto representado no caixão arrastado pelo herói durante suas andanças. A mudança de tom, portanto, é contundente e se afasta da desesperançada trajetória do filme original. Quando King assobia o tema de 1966, o faz errando algumas notas, o que pode sugerir uma consciência na diferença entre ambas as obras.
Pensando nas tuas críticas mais severas... Não achei a cena da janta mal construída. Acho coerente que um sulista ignorante, metido a culto e ressentido com a finesse de King julgue mais divertido deixá-lo vivo após engambelá-lo e tomar todo seu dinheiro, o que parece claro no sorriso escarnecedor de Candie após a transação e na sua posterior irritação ao descobrir que sabe menos acerca de Dumas do que julgara. Acho também que, assim como houve com Aldo Reine, Tarantino fala pela boca do doutor King no momento em que este mata Calvin e diz “Sorry, I couldn't resist.”, o que desencadeia o banho de sangue presente em Django.



A frase pode ser o manifesto de um desejo irrefreável de Tarantino ao nos presentear com o tiroteio absurdo. Se ele lembra outras cenas já dirigidas pelo diretor, teve para mim a surpresa de fugir do molde Sergio Leone (o que era esperado e fora amplamente aproveitado em KB) e ir para uma vertente mais Sam Peckinpah ou ainda remetendo a filmes policiais asiáticos adorados pelo diretor (o truque de pular de costas na porta enquanto atira – empreendido por Django – é o mesmo utilizado pelo matador de The killer, de Jonh Woo). Além disso, um item comum da gramática tarantinesca, os longos travellings, é deixado de lado, o que também dá um andamento diferenciado para este filme que confia mais no tempo entre os cortes do que no tempo interno das tomadas. Eficaz para um roteiro tão episódico.
Falando, por fim, da violência, creio que, se pararmos para pensar, somente três cenas devem incomodar pelo excesso violento: a dos cães, a do “mandingo fight” e o tiroteio final. O que já acho que reduz o furor de certos críticos. Sempre vi a violência de Tarantino como mais do que um simples fenômeno de estilo. Além disso, acho equivocado dizer que se trata de uma temática de sua obra. Nele, a violência nunca é um fim, mas um meio. Resta saber então se ela é justa ou não, o que é solucionado pela vingança e, por isso, o diretor parece não conseguir abandonar este tópico. Ela justifica o meio. Basta comparar a violência de Django com a tortura em CA e vê-se a diferença.



Além disso, em termos sociais, a violência não é apenas uma questão de descrição, mas de legitimação. Na alardeada cena do tiroteio, um pistoleiro é baleado em pontos não críticos e se recusa a morrer, enquanto outro tem seu corpo destruído para servir de escudo para Django. Cada corpo serve a um fim muito diferente (ainda que a violência seja a mesma) e nenhum deles se aproxima do agonizante mister Orange de CA, outro “cadáver” atirado no meio da tela e que dá sentido à dissolução da gangue no filme de estreia do diretor ou do pobre Martin em PF (talvez os dois polos do gosto mortuário do cineasta). O cinema de Tarantino sempre vai provocar a revisão de nossos horizontes estéticos (e éticos) com seus banhos de sangue e violência extremada. Ainda acho isso válido.
Por todas estas razões não senti o “esgotamento” descrito por ti. Entendo teu ponto, e tua análise da cena da explosão do diretor foi brilhante, além da desenvoltura com que percorres a obra dele. Contudo, ainda aguento o bom e velho Tarantino, admitindo, entretanto, que já estamos em tempo de associar a ele este adjetivo: “velho”. Quem sabe numa segunda visita ao filme, sabendo do que se trata, tu não possas curti-lo melhor, sem expectativas. Estou ansioso pelo Kill Bill 3. Ainda que, aparentemente, com este projeto o cineasta só tenha conseguido tua futura curiosidade, de mim (graças a Django Livre) ele ainda tem a atenção.



PS1: releio este texto no dia 23/03/13. Seguindo tua orientação, ontem fui rever Manderlay. O projeto emancipacional de Grace realmente lança outra face e parece complementar a corrosiva crítica de Django Livre. Interessante que nele a violência é uma ferramenta para sustentar a mudança (quando os gangsteres vão embora, tudo desmorona).

PS2: quanto à relação de Stephen e Calvin, interpretei que o negro é o grande senhor de Candyland. Na cena em que ele revela o plano dos protagonistas ao seu senhor, o personagem perde todas as características de criatura alquebrada e senil, o que parece demonstrar que ele também representa um papel conveniente na fazenda.