sábado, 16 de janeiro de 2016

Os oito itens



Mauro Nicola Póvoas

Sei que não estou sendo nada original ao dividir essas pequenas notas analíticas de Os oito odiados em exatamente oito tópicos. Lembro pelo menos do UOL fazendo algo do gênero. Comentei, em texto sobre Django livre, que estava curioso pelo próximo projeto de Quentin Tarantino, a princípio Kill Bill III. Na crítica de Django livre, falei em esgotamento do diretor. Aqui, neste Oito, o homem repete-se de novo. Aí me dei conta: não posso ficar cobrando QT por causa disso, fazendo reparos em seus filmes por trazerem aspectos que frequentemente voltam à tona. Ora, cinema é o que ele sabe fazer, e faz muito bem, repetindo-se ou não. Vamos lá.

1) Mas começo mesmo por esse ponto. A repetição de cenas pontuais ou a intertextualidade interna e externa. Uma fórmula que gosto muito de fazer, em termos de blague, já que é bastante redutora, é definir um filme qualquer pelas suas referências mais diretas. Senão vejamos, então, como ficaria com Oito: Uma noite alucinante + Cães de aluguel + Um drink no inferno + Bastardos inglórios + Django livre. Quatro filmes são roteirizados por QT, o que já aponta para a egolatria do diretor. Aliás, só o mito de Narciso explica a narração em off impetrada pelo diretor no meio de Oito, na minha opinião completamente dispensável; OK, sempre implicarei com toda e qualquer narração em off em um filme, fora Blade runner, of course! Se a narrativa em off não funciona, outro recurso cinematográfico que QT sempre utilizou muito bem, o flashback, aqui retorna triunfalmente, depois de não aparecer em Django. Voltando, porém, aos filmes acimas listados, temos: a orgia sanguinolenta de pessoas confinadas num lugar com forças do mal, retirados de Noite e Drink (só que o mais aterrorizante em Oito é que a força do mal, aqui, é o homem); a intrincada engrenagem armada por criminosos acuados em um recinto, de Cães; o porão como espaço da surpresa, retirado de Bastardos; a retomada da questão do negro, do gênero faroeste e da época em que se passa a história, de Django. Falando nisso, confesso que torço para que Tarantino volte logo ao presente na ambientação de suas narrativas, depois de três filmes alocados no passado; assim, ele retomaria as suas deliciosas referências ao mundo contemporâneo (por exemplo, Madonna em Cães; McDonald’s em Pulp fiction etc.). E mesmo as gemas pop das suas trilhas sonoras talvez voltassem a ser mais utilizadas, pois introduzir Chuck Berry num faroeste ou num filme de guerra torna-se mais difícil.



2) Ainda no terreno das referências, não falei acima, mas há um quê de Sherlock Holmes (ou dos livros de Agatha Christie) no filme, com as deduções de Major Marquis Warren levando-o, passo a passo, a desvendar o intrincado jogo armado na cabana. O negro é o mais esperto ali, embora termine o filme sem sua genitália, ele que tinha a usado como instrumento de poder e desforra em relação aos brancos, anteriormente; já John Ruth, num trocadilho com seu nome, é rude, o caipora estúpido que acredita na lorota da carta de Lincoln. Não à toa, é um dos primeiros a morrer, enquanto o negro, que possui um toque de refinamento, é o último a se despedir – na verdade, embora não morra em cena, vai morrer. Isso já estava em Django, em que o negro pistoleiro vence o branco Candie em todos os quesitos, dos físicos aos intelectuais.



3) A partir do dito acima, de novo a questão das “minorias” – negro, mulher, estrangeiro – é problematizada por QT em um de seus filmes. Os oito odiados é uma incisiva crítica social-política que alegoricamente, por meio do tabuleiro de xadrez montado na casa, mostra como se formataram os EUA de hoje. É uma nação que, sob a capa da democracia e da igualdade, fomentou-se a partir do signo da morte, das armas, do capitalismo desenfreado, em que cabeças humanas são disputadas a tapa em troco de um punhado de dólares a mais. Sendo assim, não surpreendem o discurso de um Donald Trump, contra a imigração, ganhar popularidade na atual corrida presidencial estadunidense; ou que Obama até hoje não seja engolido pela classe média americana; ou que as mortes por tiroteio em fábricas ou escolas aconteçam quase que uma vez por semana por lá. É isso que Tarantino quer mostrar – no cubículo de Minnie, está o cadinho que ferveu e deu origem ao que hoje chamamos de EUA.



4) Sim, não é um faroeste, é um filme que fala da formação geopolítico-social de uma nação (o nascimento de uma nação, ecoando Griffith). Nortistas e sulistas, que se odeiam, dão origem a uma nação pretensamente una, forjada pelo ódio, pelas armas, pela guerra, pela pena de morte, pelo racismo. Não adianta fugir do passado. Embora seja uma colônia europeia, ou seja, todos os seus habitantes são imigrantes (fora os índios nativos), nos EUA viceja uma ojeriza àquele que vem de fora, tanto que o mexicano tem a morte mais marcante, esdrúxula, macabra – parece que estamos assistindo a Scanners: sua mente pode destruir, clássico de David Cronenberg. E se os negros colaboraram, e muito, para a construção do país, embora isso seja pouco reconhecido, a metáfora de apenas um cavalo branco estar em meio a cinco equinos negros, dos seis que conduzem a carruagem de John Ruth, diz muita coisa dos trabalhos pesados a que os negros foram forçados durante o período escravocrata, que está tatuado na sociedade e que aparece no filme de maneira bem pontual nos inúmeros “nigger” ditos pelas personagens ao longo da projeção. Agora, o final é de uma ironia sublime, em que o nortista e o sulista (ou o negro e o branco) se unem, talvez um pouco forçosamente, para enforcar a mulher, mãe de todos os males – Daisy Domergue é uma Caixa de Pandora rediviva. A cena orgiástica, perturbadora e algo artificial propõe como solução uma paz duvidosa e equilibrada no fio da navalha, e que vai dar na sociedade exatamente machista de hoje. Ironia das ironias, esse patriarcado (heterossexual, é evidente) que extermina mulheres e bate nelas constrói-se numa cena, os últimos fotogramas do filme, com nítido viés homossexual, em que se nota a mescla das pulsões freudianas de sexo e de morte, exatamente como Bataille aponta em seu estudo clássico sobre o erotismo: numa cama, languidamente, o branco recosta-se sobre o negro mutilado em seus órgãos genitais. Exaustos depois do ato sexual-mortal consumado, ao invés de fumarem cigarros e perguntarem reciprocamente “Foi bom para você?”, o branco pede a famosa carta de Lincoln e a lê com voz delicada. Desce o pano.



5) A mulher tarantinesca tem o poder em Jackie Brown e Kill Bill. Já em Oito, se ela é a força-motriz que conduz o filme, também é ela quem mais apanha e sofre, com o detalhe de que não sabemos exatamente quais foram os seus crimes. Uma mulher vilã num mundo tão masculino é já um dado ameaçador da ordem, mas não há espaço no filme nem para o discurso feminista do empoderamento da mulher, nem para a via da fetichização do sexo feminino (a doce, a frágil, a bela, a que dá a vida etc.). Há tão somente agressão e humilhação contra a mulher, que sofre nas mãos dos homens violência inenarrável, transformando-se em mero objeto que permitirá o enriquecimento a partir da sua entrega ao poder estabelecido (outra ironia: num universo caótico como aquele, Ruth não quer fazer a justiça com as próprias mãos. Mais uma prova de sua ingenuidade para viver naquele mundo?). É uma face cruel da realidade emulada pelo filme: um homem quer ficar rico à custa da morte de uma mulher. Ou, como foi dito acima, um conluio entre forças masculinas antes antagonistas vislumbra um caminho para uma sociedade, naquela época ainda em formação, e que se dá por meio da eliminação da mulher. O que e onde vai dar um país que se alicerça em tais valores e vetores? Repetindo: na verdade, Oito, aparentemente um faroeste, trata da formação de um país que hoje, embora seja odiado por muitos, é por outro lado amado e buscado por outros tantos.



6) Ninguém diz a verdade no filme; melhor, não há como saber se o que é falado é mentira ou não. Se já não bastasse ser uma civilização montada no ódio e no rancor, ainda se seguem a mentira, a falsidade, a hipocrisia. Existem os quinze homens do irmão de Daisy, à espera de uma ordem, em Red Rock? Chris Mannix será mesmo o novo xerife designado para a mesma Red Rock? Quem eram aqueles homens que o major negro carregava? A carta de Lincoln era verdadeira? O caubói vai passar o Natal com a sua mãe? Houve a felação do filho do general no major? O inglês é mesmo o carrasco? O mexicano é o encarregado da estalagem na ausência de Minnie? Algumas dessas perguntas são respondidas e desmascaradas, outras não. Interessante que se a palavra pouco vale, os papéis tampouco, pois carregá-los consigo não prova muita coisa num mundo dominado pela força bruta e pela dissimulação.



7) Preciso admitir: QT é um deleite, é para ver e rever, é cinema para quem gosta de cinema, já tinha dito isso antes em algum lugar. Pensando na parte mais técnica, destaco aqui a trilha sonora original de Ennio Morricone e a linda fotografia, emoldurada pela brancura sem fim da neve (ambas, música e fotografia, por sinal, indicadas ao Oscar). A longa duração, que pode cansar aos incautos, aqui de novo é a medida para uma preparação lenta e longa do espectador para o que está por vir, e sempre algo está por vir num filme de Tarantino, senão não seria uma filme de Tarantino. São 167 minutos, a sua maior película, batendo em dois minutos Django.



8) Para fechar, volto à questão: para onde vai Tarantino? Em entrevista, comentou que se dedicar ao teatro seria uma possibilidade, tanto que Oito tem muito de cênico, com metade do filme se passando num único espaço, em que ninguém sabe as intenções dos outros, lembrando, aliás, A ratoeira, a famosa peça de Agatha Christie. Na situação em que se encontram as personagens, verifica-se também elementos de teatro do absurdo e de grand guignol – talvez esteja aí o futuro do cineasta. Também em entrevistas, ele disse que quer fechar a sua conta em dez filmes como diretor, sendo este o oitavo. É uma conta de mentiroso, pois Kill Bill é considerado um ou dois filmes? À prova de morte, conforme a resposta sobre Kill Bill, então, entra ou não entra. Há ainda o episódio de Grande Hotel e o seu primeiro filme, a comédia amadora My best friend’s birthday. E mesmo os oito odiados do título são difíceis de estipular, já que lá pelas tantas temos nove figuras na cena, sendo uma delas o cocheiro O. B. Depois entra mais uma personagem na cena, saída do alçapão, somando dez. Os oito são os passageiros, quatro mais quatro, que chegam nas duas carruagens, excluído o general? Ou se coloca o general e sai a moça? Há ainda pelo menos uma outra “pegadinha” que Tarantino espalha ao redor da produção: o trailer possui uma imagem, alguém de vermelho sendo atirado de cima de uma diligência, que não está no filme. Essas questões todas, óbvio, são propositais, a fim de deixar o espectador pensativo e/ou confuso. Enfim, neste momento, o importante para Tarantino era fechar de uma vez a conta em torno do número mágico de oito, para coincidir os oito do título com os oito supostos filmes, odiados pelos detratores, amados pelas fãs. Fico neste último grupo[1].






[1] Poderia ainda, para roubar ideias de Daniel Baz dos Santos, falar sobre a degustação de bebidas (aqui no caso, de café), sobre as discussões que ocorrem em torno de uma mesa, sobre o cartunesco da mesura de Daisy quando é apresentada na chegada à cabana. Como eu sei que ele o fará, silencio.