sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Quando explode a vingança, de Sergio Leone, e o homem despedaçado


Daniel Baz dos Santos

Quando explode a vingança (1971) foi concebido para ser dirigido por um norte-americano. Nomes como Peter Bogdanovich e Sam Peckimpah foram cotados para coordenar a produção e, ainda que confie na capacidade criativa de ambos (e certas passagens de Meu ódio será sua herança remetem em certa medida ao filme aqui analisado), não posso deixar de sentir-me alegre pelo projeto ter chegado a Sergio Leone. O diretor estava no auge da sua carreira, após ter feito sua obra maior Era uma vez no oeste e consagrar-se como um dos maiores diretores de todos os tempos, adorado pelo público, mesmo que rejeitado por imensa parte da crítica especializada. O filme, de fato, deveria integrar uma segunda trilogia leoniana e receberia o título de “Era uma vez na revolução”, central, portanto, no projeto de reinvenção do diretor, ávido por expandir suas técnicas narrativas e o conteúdo de seus filmes. De acordo com Douglas Kellner: “A violência dos filmes de Leone estava aumentando mais e mais (e a renda de bilheteria também!) afinal, esse era comprovadamente o segredo de seu grande sucesso. Em contrapartida, o diretor procurava, astutamente, equilibrar sempre aquela violência com toques de ironia, farsa e comicidade, lembrando ao público que aquilo tudo não passava de um filme.”
Quando explode a vingança apresenta Rod Steiger no papel do mexicano Juan Miranda. No início do filme, ele aguarda na beira de uma estrada e, quando vê uma carruagem de luxo vindo em sua direção, decide pedir carona a ela. Este início se relaciona com as outras “cenas de espera” que abrem muitos dos filmes de Leone, como a chegada de determinado veículo a um lugar específico em Por uns dólares a mais e na magistral sequência inicial de Era uma vez no oeste, ou a vinda aguardada de certo personagem nas primeiras tomadas de Três homens em conflito. Juan sobe na carruagem a contragosto dos burgueses que a integram. Estes não querem receber um mexicano miserável em seus aposentos e caçoam da pobreza do sujeito, chamando-o de “animal” e questionando sua paternidade.



Toda esta sequência apresenta uma série de elementos que revelam a mudança de rumos na proposta cinematográfica do diretor. Primeiramente na sua relação intertextual com o maior clássico do faroeste: No tempo das diligências, de John Ford. Assim como na obra de 1939, aqui o ambiente interno do veículo funciona como microcosmo do universo social e seus conflitos e estabelece um contraste brutal entre o exterior desértico e o interior extravagante do transporte. A diferença central aqui é que a sociedade não tem mais chance de redenção. Todos estão em franca decadência moral e, por isso, terão seu percurso interrompido drasticamente. No entanto, a importância da cena é muito mais estilística. O espectador que conhece a filmografia de Leone (e o diretor adorava sinalizar para a própria obra) aprendeu a reconhecer o jogo preciso estabelecido pelo diretor com o uso dos planos detalhes, especialmente em suas cenas de duelo. Num primeiro momento, eles serviam como contraponto ao ambiente vasto das montanhas rochosas e canyons que marcam o gênero. O corte abrupto, do muito pequeno para o muito grande, ajudam, nesse sentido, a estabelecer um conflito de interesses entre homens rústicos que são a um só tempo o produto e os produtores do cenário no qual caminham, passivos e ativos no drama e, dessa forma, inicialmente ambíguos (como o vilão vivido pelo símbolo heroico Henry Fonda em Era uma vez no oeste).





A ideia do close como realce da expressividade do ator, presente na gramática clássica do cinema, nunca esteve no modus operandi leoniano. Basta lembrar seu famoso “elogio” a Clint Eastwood: “Gosto de Clint porque ele tem apenas duas expressões. Com chapéu e sem chapéu.”. As tomadas fechadíssimas têm ainda o propósito narrativo básico de acentuar o suspense, elaborar o momento que antecede a explosão de violência que, sabemos, inevitavelmente virá, como se o instante antecedente a ela fosse ainda mais importante do que os disparos e mortes consequentes. No entanto, utilizados em contextos distintos ao longo da carreira do diretor, os recortes limitadíssimos nos rostos dos atores, notadamente nos olhos, estabelecem um recorte na figura humana que transcende a metonímia, já que nos impede de ter acesso ao valor total das figuras, que tem sua integridade fragmentada pela lógica da montagem. O rosto, os olhos, a mão, o revólver, cada um destes elementos permanecem dotados de seu próprio universo particular. O maior manifesto desta lógica é o duelo final de Três homens em conflito. Quando o personagem de Clint Eastwood finalmente dispara, um plano abertíssimo mal permite que vejamos os personagens após a conclusão do conflito, sugerindo que o resultado do duelo (ou seja, aquilo que interessa ao enredo) situa-se em um conjunto de signos diferentes do mundo fetichista anterior ao combate propriamente dito. Por esta via, Leone estabelece um olhar irônico ao papel da violência na resolução dos dramas humanos, já que os indivíduos que a propagarão são amontoados cubistas de partes descontextualizadas e desconexas, íntegras apenas graças à magia da edição.



É esse conjunto pessoal de códigos que o diretor irá subverter na cena da carruagem em Quando explode a vingança. Nela, os famosos planos-detalhe são utilizados para ressaltar as bocas e os olhos dos terríveis membros da sociedade, quanto eles ofendem e vociferam contra Juan Miranda. Além disso, alguns dos personagens se alimentam durante toda a sequência e os closes permitem que vejamos seus lábios e dentes enquanto mastigam, criando uma associação natural entre o fastio e a maldade. Essa relação ajudará a criar o tom romântico dos revoltosos paupérrimos que serão apresentados depois. Leone parece dizer que, neste seu novo filme, esta é a violência que realmente importa, dos afortunados contra os miseráveis, e ela não tem nada de cool, o que explica a transgressão operada nos limites dos próprios mecanismos estéticos canonizados por ele, permitindo, assim, que sintamos asco pelas figuras e desejemos a punição que elas receberão a seguir.
Isso porque Juan é na verdade o líder de um bando de criminosos mexicanos que tomou a carruagem para poder roubar os seus pertences, sendo nisso bem sucedido. A cena na qual Juan se revela o líder é contígua às imagens dos nobres agora nus e sem a altivez anterior, ou seja, a edição trata de demonstrar que a mudança de sorte de um (o bandido que prospera) exige o final trágico do outro (os ricos humilhados). Por fim, o plano que revela Rod Steiger metamorfoseado, de pobre mexicano inofensivo, para o terrível e poderoso bandido sinaliza para outro momento de No tempo das diligências, o nascimento do fora-da-lei moderno, quando John Wayne surge na tela.



Logo, Juan conhecerá o segundo protagonista do longa, o terrorista irlandês Sean Mallory, ou John Mallory, vivido por James Coburn. Ambos irão se unir em prol da revolução mexicana no final da primeira década do século XX. Juan torna-se um herói revolucionário sem querer, quando Mallory, cada vez mais interessado pelos interesses da revolta popular, o instiga a assaltar o banco de Mesa verde. Motivado pela oportunidade de riqueza, o bandido aceita ingressar no roubo, mas se surpreende ao descobrir que, ao invés de dinheiro, os cofres guardavam os prisioneiros do governo, em um simbolismo fácil, mas eficaz. A relação conflituosa entre os dois protagonistas é o início de uma forte amizade, dinâmica presente em outros filmes do diretor. A entrada de James Coburn (que só aceitou o papel após ouvir de Henry Fonda que trabalharia com o maior cineasta de todos os tempos) é outro simbolismo funcional que muitos podem considerar deselegante. Dentro de seu sobretudo, o terrorista estrangeiro carrega quilos de dinamite e litros de nitroglicerina, o que o converte em uma pequena alegoria da revolução, já que os vários interesses que a envolvem (“revolution is confusion” – diz certo personagem) transformam todos os envolvidos em bombas em potencial: “Quando eu cair, metades deste maldito país cai comigo”- afirma Mallory.



O ideal de adquirir ouro de Juan é tratado como um sonho deslocado da realidade social mexicana. No momento em que ele conta seus interesses a Mallory, ambos se alimentam em cadeiras luxuosas posicionadas na beira de um desfiladeiro, imagem que se parece muito com um deslocamento de tipo surrealista e debocha, em certa medida, dos objetivos do mexicano. Algumas transferências dessa ordem serão operadas em outros momentos do filme, como o leitor no trem que se mostra mais preparado que os próprios bandidos, ou mesmo as cenas “foras do lugar” que contam o passado de Mallory e ajudam a construir o caráter e as motivações do sujeito. Aqui Leone está reciclando a fórmula presente em Era uma vez no oeste, quando entendemos as intenções vingativas do Gaita, mas em Quando explode a vingança, o recurso nunca atinge a mesma força presente em seu predecessor. No entanto, estas “transferências” de sentido são coerentes com a mudança de função dos protagonistas que são retirados de seu rumo natural. Algumas delas se manifestam na forma de chistes cinéfilos, como o fato de Juan batizar um de seus filhos de Napoleão, quando sabemos que Rod Steiger viveu o herói um ano antes em Waterloo.



Outro componente essencial na composição da história e que demonstra a competência do diretor italiano é a presença das frestas em vários ambientes, por onde muitos personagens veem o mundo. Elas estão espalhadas por todo o filme, a exemplo da sequência final, passada dentro da locomotiva. Estes momentos revelam a natureza enviesada do olhar dos protagonistas. As visões destes homens estão sempre irremediavelmente comprometidas, tornando-os incapazes de ver o todo que os cerca. Sua posição está, portanto, à margem do que é visto, alienada daquilo que observam e os situa aquém do espaço das pessoas comuns. Além disso, o recurso trata-se também de outra forma de entender a presença dos closes extremos nos olhos dos heróis, sendo sua contraparte estilística. A redução do mundo pela forma como o sujeito o olha é complementada pela diminuição do homem ao ato de olhar. Seria essa uma forma de estabelecer a natureza metanarrativa de alguns planos fechados de Leone, já que nós, os espectadores, também ambicionamos este espaço edênico, protegidos no escuro, de onde podemos observar a violência sem dela sofrer as consequências. Esta impossibilidade foi retratada no primeiro western de todos os tempos (considerado por muitos o filme que inaugura também o próprio cinema) O grande roubo do trem, que termina com o bandido atirando contra a câmera, vitimando também o público e revelando, por extensão, o dispositivo ilusório da sétima arte.





Outra forma de entender estes procedimentos seria aliá-los a certas decisões da edição, especialmente na cena em que o assalto ao banco é iniciado. A montagem paralela brinca com as idas e vindas da visão subjetiva para a objetiva, ou se situa em pontos de vistas mistos, como quando focaliza o relógio que Mallory observa, e erra pelos espaços, apresentando os reflexos dos lugares e dos seres em janelas ou outras superfícies envidraçadas. Este conflito de interesses, que torna o mundo um caleidoscópio substancioso de intenções, é parodiado no momento em que Juan olha a movimentação do vilarejo através dos “olhos” do governador que estampa cartazes pela cidade. Mais uma vez, em toda a longa sequência há o ideal da suspensão que precede os disparos e explosões.



A respeito disso, é necessário notar o olhar particular de Leone a respeito da função do revólver (e das armas de fogo em geral) em seus filmes. O revólver em sua obra é tudo menos o objeto físico, servindo antes como uma extensão da vontade dos heróis, uma espécie de vara de condão mágica, que impõe ao mundo aquilo que quem o porta almeja. No cinema de Sergio Leone, o revólver faz com que as pessoas parem de caminhar ou se ponham em movimento (basta dar dois ou três tiros na frente ou atrás do alvo), caçoa e graceja dos oponentes (veja-se a apresentação do personagem de Clint Eastwood em Por um punhado de dólares ou no “duelo do chapéu” em Por uns dólares a mais). A arma pode também abrir portas e mesmo servir de prisão para uma irritante mosca (no início de Era uma vez no oeste). Torna-se, assim, uma forma de projetar o desejo dos homens (e aqui seu simbolismo fálico parece ser central) na realidade, sendo a cena na qual Juan afasta um cadáver que o perturba do espaço em que se encontra com tiros de metralhadora a mais reveladora desta sua função. Essa onipresença do objeto é usada até mesmo de forma metanarrativa, já que, nos letreiros dos filmes de Leone, uma série de disparos escrevem ou retiram os nomes dos crédito dos filmes, brincadeira reveladora do papel das armas de fogo no imaginário do diretor.
No entanto, esta reflexão serve de base para o entendimento de uma das principais cenas de Quando explode a vingança: o momento em que Juan Miranda entra no esconderijo dos seus companheiros e encontra todos mortos. Enquanto ficamos vendo os corpos, com auxílio da câmera que os mostra lentamente, ouvimos os disparos de metralhadora de Miranda que busca vingança. Sendo assim, a violência presente na retaliação (e que é o centro deste e da maioria dos plots da cinegrafia leoniana) está artificialmente desligada do sentimento catártico que ela poderia atingir, já que somos obrigados a observar os corpos dos adultos e crianças que jazem no chão durante um longuíssimo período. Os sons que ouvimos nada têm a ver com as marcas de balas que vemos. É emblemático também que a cena ocorra no interior de uma gruta, discordante com os espaços abertos presentes no resto do filme, já que estamos diante de uma manifestação particular de desencanto e desilusão a respeito da solução dos dilemas trazidos pelos protagonistas, ideia articulada com o caminhar errático e desanimado de Mallory ao fim da sequência, carregando um revólver inerte e de ponta cabeça entre os dedos.




“A revolução é um ato de violência”, diz a frase de Mao Tsé-Tung citada no início do filme. Com base nisso o final da obra é legitimamente em aberto. Uma pausa artificial no rosto de Juan revela um movimento social que não tem ponto final pacífico. O último western de Leone se dá ao luxo de optar pela não finalização esquemática da intriga e nos abandona diante de mais um rosto imenso, recortado de contexto, uma imagem típica do diretor, mas que, talvez pela primeira vez, já não nos seja suficiente. Ao invés de atirar em nós, como o fora-da-lei de O grande roubo do trem, Juan Miranda nos encara e pergunta: “E eu?”, repleto ainda de mistérios, alienado do todo que o cerca, despedaçado e enigmático para si mesmo.