Daniel Baz dos Santos
Tem coisas que são
adiadas por bem. Sempre acompanhei o cinema latino-americano com entusiasmo.
Autores como Glauber Rocha, Jodorowsky, Lucrecia Martel, Tomas Gutiérrez Alea, Juan
Jose Campanella, Pablo Larraín, entre outros, me comoveram profundamente com
seus filmes durante boa parte de minha vida ou me desafiaram a compreender seu
código, emancipando-me nas duas situações. No entanto, nunca havia assistido
Carlos Sorín e não há razão lógica para esta falta. Sabia do sucesso de “Bombón,
el perro” e da trajetória do renomado diretor, principalmente a partir dos anos
2000. Contudo, somente neste 2015, tão presente e já tão longínquo, dediquei-me
a assistir a obra do mestre argentino. E que alegria de ter esperado!
A crítica tem apontado
com acerto que Sorín é o diretor (ao menos um dos) das coisas pequenas. Os
conflitos que preenchem seus filmes transitam na ordem do “homem comum”, grande
imagem do cinema argentino como um todo, popularizada pelo fenômeno quase
onipresente de Ricardo Darín, que vive este tipo com intensidade em diversos
trabalhos (mas, estranhamente, nunca atuou em um filme de Sorín). A trajetória
cinematográfica do diretor é atípica. Depois do pouco conhecido La película del rey, conseguiu orçamento
para filmar Evermile, New Jersey (1989),
que conta com a presença de Daniel Day-Lewis em seu elenco. Já em 2002 o diretor
volta com um novo filme, desta vez dentro do “boom” conhecido como Novo Cinema
Argentino (NCA), ainda que muitos autores reclamem deste rótulo, como acontece
com a também polêmica “Retomada” brasileira.
Sua obra mais
emblemática talvez seja História mínimas,
na qual somos apresentados a três enredos distintos e complementares. O primeiro
se refere a Don Justo, que mora com o filho no armazém que um dia foi
gerenciado por ele, e que agora pertence ao seu primogênito. O idoso decide
viajar de Fitz Roy até San Julian para encontrar o cão que havia perdido tempos
atrás, contra a vontade de seus familiares. A segunda narrativa trata de
Roberto, um vendedor ambulante cuja vida é pautada pela filosofia de manuais de
autoajuda do tipo “Como ser bem sucedido”. Este também está em franco
deslocamento, com o intuito de dar um bolo de aniversário ao filho da viúva de
um ex-comprador por quem está apaixonado. Por fim, acompanhamos Maria Flores,
uma dona de casa que também deve ir a San Julian, por ter sido sorteada em um
programa de televisão, onde as pessoas podem ganhar, girando uma roleta, um
multiprocessador, entre outros prêmios de menor monta.
A partir das histórias
expostas é possível perceber que o gênero Road
movie é uma característica forte no trabalho do diretor, presente também em
O cachorro. Seu universo apresenta um
repertório amplo de imagens do interior argentino, que, certas vezes, beira o
documental (caráter realçado por sua decisão de usar “não-atores”, ou
“quase-atores”, como já explicou em diversas entrevistas). Nesse sentido, Sorín é herdeiro
dos "travelogues", os filmes de viagem que mostravam imagens exóticas entre os
anos de 1890 e 1920. No entanto, o “filme de viagem” tradicional é irmão de
obras como “Viagem à lua”, de Méliès, onde partir para território distante é
fantasiar e se surpreender. Esta mescla do registro factual e do fictício rendeu uma
obra-prima do cinema brasileiro: “Viajo porque preciso, volto porque te amo”,
documentário que, durante sua produção, tornou-se um exercício de ficção
propriamente dita (já que, como sabemos, o gênero documental usufrui das mesmas
técnicas compositivas que seu cinema irmão). Além dessa ambiguidade discursiva,
o road movie em Sorín respeita aquela
oscilação própria do gênero, revelada primeiramente por David Laderman, entre
os valores conservadores da sociedade e o desejo de rebelião. Interessante que
uma reflexão operada no interior do cinema norte-americano sirva tão bem ao
presente caso argentino (e também no brasileiro, se pensarmos a obra de
artistas como Walter Salles).
A busca do cão (tópico
presente também em O cachorro) é o
dado simbólico mais explícito deste descolamento, motivador da descoberta do
próprio lugar no mundo e de uma maior conscientização a respeito do universo ao
redor. Por esta via, a primeira cena do filme é metaliguística, pois representa
o aprendizado do olhar e a adequação do ponto de vista pessoal ao resto do mundo,
mimetizada pela ida de Don Justo ao oculista. Na cadeira do exame de visão, com
aquela engenhoca sinistra diante dos olhos, o velho exclama diante do resultado
negativo: “Mas Doutor, eu nunca dirijo na estrada. Só quero a carteira para
dirigir na cidade”, o que prova o sedentarismo atual do protagonista. Os créditos iniciais da obra são mostrados
tendo ao fundo os painéis fora de foco que o homem observa (informações como o
nome do diretor e os patrocinadores aparecem, contudo, nítidos em primeiro
plano). Esta indefinição do universo, opaco e confuso, também será operada no
interior do trajeto desenvolvido por Don Justo.
Na próxima cena
protagonizada pelo personagem o vemos diante do mercado que o filho herdou,
observando a estrada, enquanto saboreia o seu chimarrão. Ela aqui é ainda um potencial,
elaborado pelo enquadramento e o desejo de aventura representado pelos tênis
de alpinista que o senhor calça. Quando tenta conversar com filho sobre
sua empreitada, este está arrumando a antena parabólica da residência,
comentário irônico a respeito do sedentarismo das personagens, desinteressadas
pela epopeia real e hipnotizadas pelas ondas de rádio e TV. Não por acaso uma
de suas três personagens principais conhecerá o funcionamento de um programa de televisão e muitos
dos estabelecimentos mostrados pelo filme possuem um destes aparelhos ligados
(e apresentam novelas, o carnaval e propagandas de diversos tipo). O desejo de
novidade é também bivalente em um universo subdesenvolvido e encontra o seu
contraponto na cena em que as velas novas em um bolo não podem ser apagadas,
pois voltam a acender depois de sopradas, uma “tecnologia” inútil e
desconcertante que simboliza a relação das personagens interioranas com os ideais modernos. Em
resumo, se a estrada é uma imagem de aproximação com o novo, o filme explora essas
outras novidades que parecem pôr em diálogo a lógica provinciana e os produtos "de fora", síntese que para muitos é essencial no entendimento da latinidade.
Maria, contudo, irá
trocar a multiprocessadora por uma janta, já que não tem dinheiro para ficar
uma noite a mais na cidade. Na
cena em que a personagem ganha o prêmio, não vemos nada além de um close
fechadíssimo em seu rosto e o encantamento com o circo televisivo, situação que
se processa muito bem em outros filmes contemporâneos, a exemplo do chileno
“Tony Manero” (em que um personagem perde tudo para participar de um concurso
televisivo de imitações de John Travolta) e do italiano “Reality – a grande
ilusão” (no qual um personagem tenta a todo custo participar do Big Brother).
Além disso, os espaços
de intimidade, repletos de imensa cortesia, principalmente no périplo de Roberto para
tentar consertar o nome errado que pôs no bolo de aniversário, se contrapõe ao espaço aberto
da estrada. O trajeto deste personagem incorpora uma das grandezas de nossa tipologia
enquanto comunidade subdesenvolvida, ou seja, a improvisação, a necessidade de
resolver problemas com aquilo que, ainda que insuficientemente, temos à
disposição. É nesse tratamento da vida comum que temos a dupla face do realismo
de Sorín. Segundo Glauber Rocha, em clássico texto, se Visconti discursa
dialeticamente sobre um tema qualquer, Rosselini costuma lançar perguntas a ele. Ainda
que não concorde integralmente com a redução proposta pelo cineasta baiano a respeito dos autores italianos, é frutífero
relacionar este último, que não buscava mais a compreensão materialista da
história, com Sorín, para quem a realidade carece de lógica e, por isso, é
retratada com estranhamento. As coisas em dados momentos são novamente vistas e
não apenas “reconhecidas”, como se objetos mundanos (assim como as pessoas que os possuem)
pudessem ter um valor simbólico nunca pensado. Muito desse impacto é
incorporado à experiência do leitor na percepção que as personagens também
adquirem (sempre parcialmente) do mundo ao seu redor, o que explica os inúmeros
closes em itens do cenário aparentemente desimportantes. O maior manifesto
desta atitude é o início de “O cachorro”, na qual o protagonista tenta explicar
para um grupo de operários que o cerca o porquê de sua faca artesanal valer o
valor cobrado (o que não convence os possíveis compradores).
Isso também está em dia
com outra opinião de Glauber Rocha, ao falar no percurso do cinema de Buñuel,
Vigo e Rosselini, cuja súmula marginal seriam a liberdade, o misticismo e a
anarquia, únicas formas de fugir do espetáculo. Sobre esse cinema defende que:
“Seu estilo é uma ideia em movimento – a liberdade realista desta ação é
seguida por um olho atento aos detalhes: a ducha de água quente e fria,
irregularmente, jamais permitindo que o espectador pare de pensar”. O mesmo
pode ser dito do repertório imagético de Sorín em vários pontos de seu
trabalho.
A cena final de "Histórias mínimas" se passa dentro de um ônibus com alguns dos personagens voltando para a casa, em
uma síntese entre intimidade e estrada. Maria, antes de o filme terminar, se
olha em um espelho, como se finalmente se reconhecesse, sendo esta a última
alegoria do filme. Ismail Xavier em “A alegoria histórica”, explica que “O
surgimento de uma concepção de história como um processo ininterrupto de
produção, mudança e dissolução de sentidos acabou por desautorizar antigas
concepções de signos e práticas discursivas como elementos capazes de produzir
interpretações estáveis e universalmente válidas, relacionadas orgânica e
necessariamente às verdades essenciais da vida. A cultura moderna, perseguida
por uma noção radical de instabilidade, parece condenada a explorar as
implicações do fato e que os significados – notadamente nos novos contextos
culturais de combinação de signos – podem ser esquecidos, deslocados e
retorcidos em face das forças históricas e sistemas de poder. Essa nova
consciência de instabilidade apenas reforça uma antiga percepção do caráter
problemático dos processos de significação – percepção que atualmente nos
distancia do paraíso perdido das linguagens transparentes.” Sorín é inteligente
ao mostrar o duplo espelhamento da consciência que parece se reconhecer, ainda
que de forma parcial e refratada, e apostar nesta representação autoconsciente
e nada ingênua para repensar o discurso que produzimos acerca de nós mesmos. É
por este olhar humanamente preciso que agradeço a oportunidade de ter conhecido
o trabalho do diretor com maturidade o suficiente para entender parte de sua
grandeza, sustentada por seres mínimos como eu.