sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Dá série “À espera de ‘Hateful Eight’” – 2

Os dois textos que se seguem foram escritos há mais de dois anos, quando do lançamento de Django livre, de Quentin Tarantino. São postados aqui dentro da série “À espera de Hateful Eight”, para preparar o público para o novo filme do diretor norte-americano, que será lançado até o final do ano. Eu escrevi o primeiro, a partir da minha visão do filme; Daniel escreveu o texto subsequente, uma espécie de réplica que não teve uma tréplica, já que em geral concordei com quase tudo de sua brilhante resposta, menos a questão da janta – continuo a sustentar, embora nunca tenha revisto o filme, que é uma cena que precisava de uma melhor resolução. Um e outro elemento dos dois textos estão desatualizados, mas foram mantidos, em respeito ao espírito original do tempo da escrita. Boa leitura, Mauro.


Comparando Django

Mauro Nicola Póvoas

Aqui quem fala é um fã quase de primeira hora de Quentin Tarantino, que já escreveu sobre seus filmes, que possui os filmes dele em DVD em casa, que tem livros sobre ele e que o defende daqueles que veem nele quase que apenas um diretor que abusa de uma perigosa estetização da violência. Lembro-me, nos idos de 1994, saindo do Cine 7 de Setembro, no Calçadão de Rio Grande, um tanto estupefato por Pulp fiction – Tempo de violência (PF). Não conhecia ainda Cães de aluguel (CA), seu primeiro filme, mas pensei: “Esse cara veio para ficar”. Jackie Brown (JB) foi mais ou menos uma decepção, mas o desbunde da exuberância barroca de Kill Bill (KB) (considerando os dois volumes como um filme só), seguido do impecável Bastardos inglórios (BI), deixou claro que o homem era um gênio do cinema.
Agora, finalmente, no dia 16 de março de 2013, consegui assistir a Django livre (DL), no Cine Dunas. Qual a minha sensação hoje, quando escrevo? Decepção não, que é forte, mas certo incômodo, um déjà-vu. Pode parecer que não gostei do filme, pelo contrário, DL é bom, até porque o diretor já está no panteão daqueles que têm algo a dizer, que têm uma estética própria. Dos cineastas vivos, quem está ao seu lado? Poucos, Almodóvar, Allen, Herzog, Haneke, Von Trier, Lynch, e poucos mais.
Neste ponto, quero fazer a minha lista pessoal de preferência dos filmes do diretor nascido em Tennessee. Revi PF e JB há duas semanas; a cada volume de KB vi 2 ou 3 vezes no cinema; BI vi 2 vezes, uma no cinema, uma no DVD. À prova de morte (PM) vi recentemente, assim como revi há pouco Cães de aluguel (CA). PF continua a ter o frescor de 19 anos atrás, 1º lugar. KB vem em 2º, BI em 3º, DL em 4º, empatado com JB. CA e PM, por serem produções menores, não considero aqui.



E por que DL aparece em 4º nessa minha lista pessoal? Isso não é demérito, levando em conta que o filme mais fraco de Tarantino é melhor que 95% da produção mundial. Mas fiquei matutando o porquê, e vou tentar apontar alguns aspectos.
Já falei ali em cima de déjà-vu, acho que é mesmo isso. O filme retrabalha clichês do faroeste, mas ao colocar um negro e a escravidão como protagonistas, faz uma viragem espetacular em gênero tão clássico e conservador. Mas não é isso, a sensação do já-visto é em relação a outras obras do mesmo diretor, aí é que a coisa, na minha opinião, começa a ficar perigosa. Só Woody Allen consegue fazer, com sucesso, sempre o mesmo filme.
Muito do que está em DL emula algo já dito antes nas produções anteriores do diretor. A estética e o mito tarantinescos explicam-se por uma série de tópicos, que ao se repetirem podem estar chegando ao cansaço, pelo menos para aquele público mais fiel: a presença negra, a estetização da violência, a vingança, a repetição de algumas cenas pontuais, a homenagem a um subgênero, a trilha sonora, os atores, a longa extensão, as múltiplas identidades.



A presença negra já estava em PF e, especialmente, em JB, embora aqui seja trabalhada de forma mais incisiva, ainda mais que em conjunto com a estetização da violência, tópico sempre questionado em suas obras. Mas por estar associada aos negros, essa violência talvez encontre, dos filmes todos de Tarantino, a sua mais perfeita justificação (em BI, o nazi-fascismo também é uma justificativa e tanto para o banho de sangue impetrado), pois um negro matar brancos, depois das barbaridades cometidas por estes, não parece absurdo e até rimos e ficamos felizes quando a família de Candie e seus capangas são trucidados por Django – tudo dentro da lógica oferecida pelo filme, claro. Sobre o protagonismo, se em JB, desde o início, temos uma negra como personagem principal, em DL há uma paulatina transformação de Django em protagonista, tomando o lugar do Dr. King Schultz, até a morte deste, o que anuncia a proximidade da alforria definitiva e muito bem alegoriza um necessário de empoderamento dos negros na sociedade atual.
(Um parêntese: é preciso rever Manderlay, de Lars Von Trier, que também traz a questão escravocrata americana, aí sob a visão de um diretor europeu; o filme, tenho a lembrança, é bastante desconcertante.)
A dualidade gilbertofreyreana, da casa-grande e da senzala, fica muito clara na fazenda de Candie: de um lado, DiCaprio como um personagem revoltante, a casa-grande em pessoa, pertencente a uma aristocracia que em breve começará a entrar em decadência (e que não sabe falar Francês, ainda por cima!), de outro, Samuel L. Jackson, envelhecido pela maquiagem, na mais perfeita encarnação da senzala que se imiscui na casa-grande, “pegando”, por osmose, todos os vícios, preconceitos e tiques do sinhozinhos (por isso, insisto, é preciso rever Manderlay – essa relação perigosa e pegajosa aparece muito bem lá). Anotaria que talvez seja um pouco forçada a convivência tão íntima que Stephen, o personagem de Jackson, estabelece com Calvie Candie, levando em conta o desprezo e o rancor dos brancos para com os negros, e vice-versa.



A vingança já tinha sido explorada em KB, e como fazer algo que traga consigo o cheiro da novidade depois de a Noiva trucidar todos que a traíram? A vingança é um prato que se come frio, mas Tarantino em DL requenta o já requentado, e se não fica indigesto, fica o gosto de “Outra vez? Não daria para variar o cardápio?!” Tudo bem, a vingança é mesmo tema universal, garantia de emoção e de repercussão junto ao espectador, ainda mais que nas películas de Tarantino o assunto vem sempre regado com cenas sanguinolentas, manejadas com estética cinematográfica perfeita, herdada, por sinal, dos mestres Sergio Leone e Sam Peckinpah.
Em algumas cenas pontuais, também parece que estamos vendo o mesmo filme já assistido antes. A antológica e absurda cena no final de KB I, em que a Noiva trucida 100 vilões incautos, volta no tiroteio também antológico e absurdo em que Django acaba com a mansão Candie e com metade dos homens da propriedade. Já as ótimas cenas das conversas nas mesas de um restaurante e de um bar, em BI, reaparecem na conversa na janta em DL, um pouco antes do desmascaramento dos planos da dupla. Cumpre dizer que a cena em DL não é bem construída, não funcionando a contento, pois ficamos pensando por que Candie não manda matar os dois, mais Brunhilde, ali mesmo, na hora? A dupla não tinha nenhuma carta na manga que funcionasse como moeda de troca. Por outro lado, curiosamente, a fixação por pés femininos, presente em todos os filmes do diretor, não retorna aqui.



Mas é óbvio que um diretor como Tarantino nos dá algumas cenas muito boas, em DL, em especial aquelas que cutucam com vara curta os americanos e seu estilo de vida, as duas com o Dr. Schultz: no momento em que Django diz que por ser alemão, ele não está acostumado com cachorros comendo pessoas, algo normal para os americanos, e quando o Dr., indignado, pede que a tocadora de harpa interrompa a execução de Beethoven – poucas vezes uma cena mostrou tão cabalmente a questão civilização x barbárie; europeu x americano.
É mais do que sabido que Tarantino conhece tudo de cinema, fruto muito de seu trabalho, na juventude, numa videolocadora: desde o de arte europeu até o lixo Z saído das cloacas de Hollywood. Em especial este cinema-lixo o diretor conserva no lado esquerdo do peito, tanto assim que uma das chaves de leitura de sua obra é relacionar cada um dos filmes que fez aos diferentes subgêneros cinematográficos: CA e PF conversam com o filme de gângster/policial, do submundo de drogas, jogo ilegal, prostituição; JB deve o que é ao blaxploitation, gênero de filmes dos anos 70 que tinha os negros como produtores e receptores preferenciais; KB dialoga com os filmes de samurai e kung-fu; BI recupera os filmes de guerra; e DL repagina o faroeste, ou melhor, o sub-subgênero do spaghetti-western. Há ainda PM, filme assumidamente menor, que ele dirigiu entre KB e BI, um misto de road-movie e serial-killers – assim como o são Amor à queima-roupa e Assassinos por natureza, os quais não dirigiu, apenas assinou o roteiro. Pode-se pensar, como os detratores apontam, que realmente ele nunca traz nada de novo, mas somente, antropofagicamente, retrabalha e enverniza o velho, para as massas atuais?
A trilha sonora continua maravilhosa, com pérolas esquecidas, músicas que casam com as cenas à perfeição, num trabalho de garimpo em vinis velhos que, imagina-se, demanda um tempo considerável. É obrigação ter as suas trilhas sonoras em casa, embora, óbvio, as músicas funcionem melhor coladas às imagens. Mas até isso acaba cansando um pouco em DL, num uso da música que, embora perfeito, chama a atenção pela mesmice do efeito em relação aos outros filmes do diretor.
Até mesmo os atores repetem suas aparições, colaborando na sensação de mais do mesmo – S. L. Jackson, em PF e JB; Christoph Waltz (que ator!), em BI. Ora, Tarantino é ótimo diretor de atores, vide a ressurreição na carreira de Travolta, a partir de PF, e os dois Oscar de C. Waltz (BI e DL), que sob o comando de Tarantino torna-se um gigante. Aliás, a produção milionária com “cara” de filme B, que conta com os maiores astros americanos – Uma Thurman, John Travolta, Bruce Willis, Samuel L. Jackson, Robert De Niro, Brad Pitt, Leonardo DiCaprio, entre outros –, é um dos itens de culto em torno do diretor.



E mesmo um dado que pode ser considerado banal entra em cena, a extensão dos filmes – fora os dois de menor custo de produção, CA e PM, todos os outros passam, e muito, das 2 horas regulamentares de um filme. PF e JB ainda trazem um dado curioso: ambos possuem exatos 154 minutos; BI, 153min. Mas DL ultrapassa esses todos, com 165min., e o filme acaba trazendo certo cansaço ao espectador desavisado, em decorrência de algumas soluções de continuidade que talvez pudessem ser melhor exploradas – como as idas-e-vindas dos personagens pelos diferentes espaços do território americano. Uma explicação poderia ser que a montadora de todos os filmes anteriores do cineasta, Sally Menke, morreu em 27 set. 2010, ficando o encargo da edição de DL com Fred Raskin. Será que essa mudança acarretou alguma mudança de ritmo, levando em conta a importância da montagem para resolver, ou destruir, um filme?
Por fim, as múltiplas identidades por ele mostradas – mulher, negro, estrangeiro –, contrapondo-se ao american way of life, junto a um humor paródico que desconstrói a todo momento aquele clima que deveria ser “pesado”, garante a aura de pós-modernidade indispensável para uma obra que quer dialogar com o público e a crítica contemporâneos. Entretanto, mesmo o tom irônico e o recurso de dar voz ao Outro parecem um tanto esgotados em DL. Até porque, se há nos filmes de Tarantino a crítica ao americanismo expresso na sigla WASP (branco, anglo-saxão, protestante), também é inevitável lembrar que o diretor é sempre ambíguo, no culto que seus personagens demonstram à violência, às armas, ao dinheiro, ao individualismo, itens e hábitos tão arraigados nos Estados Unidos da América.



Esgotados, usei no parágrafo acima. Esgotamento. Eis a palavra que eu vinha perseguindo desde o começo deste texto. A impressão é que Quentin Tarantino chegou numa encruzilhada, momento em que é necessário escolher um novo caminho a ser trilhado – o da reinvenção – sob pena da estagnação, do esgotamento criativo. Não à toa, o próprio Tarantino entra em cena no final do filme, e metaforicamente explode, numa prova de que é preciso seguir outros rumos. Aparentemente, e só aparentemente, o que foi dito nesse parágrafo poderia ser contrariado com dois dados: o Oscar de melhor roteiro original de 2012 para Tarantino, por DL, quase 20 anos depois do primeiro, por PF, e o fato de o filme estrelado por Jamie Foxx ser um sucesso de público, pois é a maior bilheteria do diretor no Brasil  1.120.510 espectadores até 15 de março de 2013. Mas são dados relativos, se se levar em conta os interesses político-financeiros da Academia, mais do que os efeitos artísticos de suas escolhas, e o gosto médio, por vezes bastante duvidoso, do público.
Esgotamento. Eis realmente a palavra. Só pode mesmo vir o esgotamento, depois que, no final de BI, o Tenente Aldo Raine diz, do escalpelamento que terminou de fazer (e Tarantino também fala pela boca do personagem de Brad Pitt, sobre o filme que está, naquele exato momento, acabando): “Eis a minha obra-prima”. Realmente, BI é uma obra-prima (conforme já disse, para mim, não é o melhor de Tarantino, mas tecnicamente é impecável). Depois da perfeição, do auge, difícil a superação, e o nosso diretor, acomodado, preferiu se esconder no que ele já sabia e dominava. Como sair do labirinto do já-feito e testado com sucesso? Esperemos, com curiosidade e ansiedade, os lançamentos futuros. Todavia, levando em conta que o seu próximo projeto anunciado é Kill Bill III, fica a sensação de que talvez não venham, daí, ainda, grandes novidades.





Comparando meu Django com o teu

Daniel Baz dos Santos

Tentarei pensar tuas opiniões tendo saído muito satisfeito do cinema após assistir a Django livre, ainda que também não considere este o melhor Tarantino (Pulp fiction e Kill Bill também encabeçam minha lista). Tentarei também não deixar o fato de ser um aficionado por westerns (italianos, norte-americanos e até os “farofas” cariocas) influenciar demais minhas contribuições – quentes, pois vi o filme no dia 15/03/13 e escrevo em 17/03/13.
Senti que tua principal censura ao filme se apoia em certa fórmula que Tarantino parece repetir exaustivamente em Django livre e a sensação de “já visto”, que pode ser bem nociva à experiência cinematográfica. Concordo com a facilidade dos “clipes” musicais (mesmo que a cena da pré-Ku Klux Klan tenha me marejado os olhos pela referência a Griffith) e com o repertório de ideias reaproveitadas que elencas, ainda que tenha lido essas reincidências temáticas de forma positiva. Contudo, insisto numa mudança gritante, que insere este filme num fenômeno avesso à poética de Tarantino que conhecemos até então, ou seja, a linearidade. Talvez pelo fato de estar sem sua fiel montadora Sally Menke (grande responsável, entre outras cenas, pela genial abertura de BI), talvez por achar que estava na hora de investir em uma trama de formação e com forte carga histórica, utilizando as virtudes da cronologia, o diretor investe na sequência natural dos eventos, o que funciona muito bem para criar a tensão existente no enredo, visto que nunca sabemos como os demais personagens irão agir ao ver a insólita dupla protagonista. Guardar o “depois” para depois me parece ser fundamental neste filme e admiro Tarantino por ter aberto mão de uma das características que o consagrou.



Além disso, se não estão presentes certas constantes (como o fetiche com os pés), surgem novos elementos que passam a se tornar cada vez mais comuns em sua gramática. O primeiro exemplo traz de volta o olhar fetichista para as bebidas degustadas pelos personagens, enquanto acontecimentos importantes se desenrolam. Estava no leite oferecido pelo monsieur LaPadite a Hans Landa e retorna agora na cerveja servida a Django pelo caçador de recompensas. O pormenor enfocado intensifica o suspense, além de impedir que tenhamos acesso à verdadeira hierarquia semântica das sequências, já que o, aparentemente, desimportante ganha o primeiro plano.
Outro item que retorna é o uso das várias línguas utilizadas pelos personagens, central em BI (e acredito que iniciada na famosa discussão a respeito do royal with cheese em PF) e que volta como uma forma de esconder as várias camadas discursivas em torno dos conflitos vividos pelos personagens. Aliás, com respeito à origem nacional de cada um, achei genial o fato de um sulista revolucionário adversário de um alemão nazista em BI aparecer invertida, através das figuras do alemão esclarecido e libertador oponente do terrível senhor de escravos do sul dos Estados Unidos. E o experimento com diferentes idiomas também se articula com a encenação dentro da encenação, com as personagens tendo que assumir identidades fictícias (também já presente desde CA, em que Tim Roth aprende a representar um bandido para se infiltrar no grupo de criminosos).


O universo intertextual exposto pelo diretor também ainda me impressiona e faz valer anos assistindo a filmes de faroeste terríveis que poderiam representar muita vida jogada fora não fosse realizações como esta. O pastiche é uma conduta em Tarantino. A bricolage é a bengala poética de um mundo cheio de verossimilhanças. Basta lembrar que, em Kill Bill, faroeste (e a revolução de seguir um plano detalhe por um plano geral abertíssimo), filmes de Kung Fu (e o ato de mexer no foco da câmera durante a cena, comum nestes filmes), animes, e até melodrama, convivem no mesmo universo. Por isso, fico feliz que, quando Django aprende a atirar, surja uma referência à emboscada de Era uma vez no oeste. Ou que o projeto de Calvin Candie e sua “Mandingo fight” remeta ao Mandingo, o fruto da vingança, filme horrível, mas que tem o seu melhor aproveitado pelo cineasta. Ou que a ternura da convivência entre King e Django seja exposta em uma sequência ao som de “I got a name”, remetendo à cena mais meiga de todos os westerns, ou seja, a da bicicleta em Butch Cassidy e Sundance Kid. O interesse de criar um universo autoral orgânico de filme a filme se apoia no organismo já estabelecido de outros filmes. Dessa forma, Tarantino usa o recheio de filmes antigos para produzir a cuidadosa casca de suas produções. Mais do que isso, em Django livre, outras camadas são adicionadas as já usadas, como o cartunesco (Brunhilda tapa os ouvidos com a ponta dos dedos antes da explosão) e a cultura popular mais massificada e gratuita (Django fica de frente para a explosão, contrariando o chiste pop de que “cool guys don’t look at explosions”).



Fazendo um último comentário a respeito do intertexto, acredito que a releitura do original de Franco Nero (que faz uma ponta muito boa no novo filme) é eficaz. O que movia o personagem original também era a vingança, mas sua mulher já havia sido morta, luto representado no caixão arrastado pelo herói durante suas andanças. A mudança de tom, portanto, é contundente e se afasta da desesperançada trajetória do filme original. Quando King assobia o tema de 1966, o faz errando algumas notas, o que pode sugerir uma consciência na diferença entre ambas as obras.
Pensando nas tuas críticas mais severas... Não achei a cena da janta mal construída. Acho coerente que um sulista ignorante, metido a culto e ressentido com a finesse de King julgue mais divertido deixá-lo vivo após engambelá-lo e tomar todo seu dinheiro, o que parece claro no sorriso escarnecedor de Candie após a transação e na sua posterior irritação ao descobrir que sabe menos acerca de Dumas do que julgara. Acho também que, assim como houve com Aldo Reine, Tarantino fala pela boca do doutor King no momento em que este mata Calvin e diz “Sorry, I couldn't resist.”, o que desencadeia o banho de sangue presente em Django.



A frase pode ser o manifesto de um desejo irrefreável de Tarantino ao nos presentear com o tiroteio absurdo. Se ele lembra outras cenas já dirigidas pelo diretor, teve para mim a surpresa de fugir do molde Sergio Leone (o que era esperado e fora amplamente aproveitado em KB) e ir para uma vertente mais Sam Peckinpah ou ainda remetendo a filmes policiais asiáticos adorados pelo diretor (o truque de pular de costas na porta enquanto atira – empreendido por Django – é o mesmo utilizado pelo matador de The killer, de Jonh Woo). Além disso, um item comum da gramática tarantinesca, os longos travellings, é deixado de lado, o que também dá um andamento diferenciado para este filme que confia mais no tempo entre os cortes do que no tempo interno das tomadas. Eficaz para um roteiro tão episódico.
Falando, por fim, da violência, creio que, se pararmos para pensar, somente três cenas devem incomodar pelo excesso violento: a dos cães, a do “mandingo fight” e o tiroteio final. O que já acho que reduz o furor de certos críticos. Sempre vi a violência de Tarantino como mais do que um simples fenômeno de estilo. Além disso, acho equivocado dizer que se trata de uma temática de sua obra. Nele, a violência nunca é um fim, mas um meio. Resta saber então se ela é justa ou não, o que é solucionado pela vingança e, por isso, o diretor parece não conseguir abandonar este tópico. Ela justifica o meio. Basta comparar a violência de Django com a tortura em CA e vê-se a diferença.



Além disso, em termos sociais, a violência não é apenas uma questão de descrição, mas de legitimação. Na alardeada cena do tiroteio, um pistoleiro é baleado em pontos não críticos e se recusa a morrer, enquanto outro tem seu corpo destruído para servir de escudo para Django. Cada corpo serve a um fim muito diferente (ainda que a violência seja a mesma) e nenhum deles se aproxima do agonizante mister Orange de CA, outro “cadáver” atirado no meio da tela e que dá sentido à dissolução da gangue no filme de estreia do diretor ou do pobre Martin em PF (talvez os dois polos do gosto mortuário do cineasta). O cinema de Tarantino sempre vai provocar a revisão de nossos horizontes estéticos (e éticos) com seus banhos de sangue e violência extremada. Ainda acho isso válido.
Por todas estas razões não senti o “esgotamento” descrito por ti. Entendo teu ponto, e tua análise da cena da explosão do diretor foi brilhante, além da desenvoltura com que percorres a obra dele. Contudo, ainda aguento o bom e velho Tarantino, admitindo, entretanto, que já estamos em tempo de associar a ele este adjetivo: “velho”. Quem sabe numa segunda visita ao filme, sabendo do que se trata, tu não possas curti-lo melhor, sem expectativas. Estou ansioso pelo Kill Bill 3. Ainda que, aparentemente, com este projeto o cineasta só tenha conseguido tua futura curiosidade, de mim (graças a Django Livre) ele ainda tem a atenção.



PS1: releio este texto no dia 23/03/13. Seguindo tua orientação, ontem fui rever Manderlay. O projeto emancipacional de Grace realmente lança outra face e parece complementar a corrosiva crítica de Django Livre. Interessante que nele a violência é uma ferramenta para sustentar a mudança (quando os gangsteres vão embora, tudo desmorona).

PS2: quanto à relação de Stephen e Calvin, interpretei que o negro é o grande senhor de Candyland. Na cena em que ele revela o plano dos protagonistas ao seu senhor, o personagem perde todas as características de criatura alquebrada e senil, o que parece demonstrar que ele também representa um papel conveniente na fazenda.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

"Entre nós", de Pedro Morelli, e a saudade do que somos




Daniel Baz dos Santos



“A ciência da abeia, da aranha e a minha
muita gente desconhece”
- João do Vale/Luiz Vieira

“Não sei o que é mais frustrante:
se é não realizar nenhum sonho,
ou realizar todos eles.”
- Cazé (personagem de Júlio Andrade)


Quando “Entre nós” começa, nos deparamos com Felipe, o personagem de Caio Blat, caminhando em um ambiente campesino, cercado de montanhas cobertas por vegetação. O sujeito está só, reflexivo e apequenado pelo mundo que o cerca. A cena é contrastada pela sequência seguinte, na qual vemos o personagem acompanhado do grupo de jovens que irá compor com ele a história do filme. Todos interagem felizes, enquanto lemos o nome dos atores nos créditos que, em um procedimento metalinguístico e emotivo, também são conhecidos de muitos anos.
Essa escolha inicial de edição do diretor Paulo Morelli, que também assina o roteiro, elabora a esfera inferencial e sintética da montagem, apontada e defendida inicialmente por Eisenstein, ao levar-nos a associar dois momentos antitéticos, mas inesperadamente, contíguos. Primeiro, a solidão, depois, a comunhão. Dois valores que serão explorados em vários níveis ao longo de todo o filme e aparecem resumidos na sua montagem inicial. Além disso, as duas sequências, quando unidas pela mente do espectador, estabelecem uma contradição, cujo produto ainda é difícil de imaginar, e esses vazios, associados àquilo que as personagens escondem e o pouco que podemos saber a respeito delas, também será central no andamento da obra.




A história relata, inicialmente, este dia animado de 1992, quando o grupo de amigos aspirantes a escritores decide enterrar debaixo de uma pedra no terreno de Silvana (personagem de Maria Ribeiro), a dona do lugar, papéis com escritos a respeito de suas expectativas para o futuro. Neste mesmo dia, Rafa (interpretado por Lee Taylor) mostra a Felipe o final do romance que vinha escrevendo, enquanto ambos se dirigem para a cidade em busca de mais bebidas. Após apreciar o desfecho do texto do amigo, Felipe confessa estar diante de uma obra-prima para, assim que rumam pela estrada, ser o único sobrevivente do acidente automobilístico que mata Rafa.
Em 2002, o grupo se encontra para ler os escritos enterrados e o conteúdo do filme ocupa-se desta dinâmica em torno do reencontro, das mudanças ocorridas devido à passagem do tempo e dos conflitos vividos entre eles e por eles. Acompanhamos a chegada do personagem de Caio Blat, um romancista reconhecido após publicar o primeiro livro, considerado uma obra-prima. Logo saberemos o porquê desta ênfase no personagem, cuja imagem é filmada, mais uma vez, em paralelo com certos planos que mostram a paisagem que circunda o local. Os demais amigos começam a chegar e notamos, como o primeiro encontro deles já demonstrava, que a relação entre o grupo é essencialmente emocional. A câmera e o roteiro se esforçaram para captar este aspecto da trama. Hugo Munsterberg no texto “As emoções” defende que o extrato emotivo, das muitas possibilidades artísticas, é o mais forte no cinema.  Acrescenta ainda que a primeira ferramenta de captação do sentimento humano, depois recuperada em certas passagens de Deleuze, é o close, muito mais eficaz, segundo o teórico, que os binóculos dos teatros e das óperas, permitindo que sintamos o repertório dos gestos faciais que compõe os conflitos que o sujeito traz dentro de si. 




Este artifício é amplamente utilizado nas sequências de “Entre nós”, servindo também para recortar os personagens de sua paisagem, estimulando a intimidade entre eles. Partindo disso, o teórico explica que toda imagem possui um aspecto material (que ele entende pelo conteúdo, emocional, no caso) e outro formal, ou seja, o estilo empregado na expressão da matéria. Paulo Morelli se diverte com as diferenças de ênfase entre um polo e outro, especialmente pelo uso dos movimentos de câmera. Munsterberg já terminava o texto citado anteriormente sugerindo que o futuro da comunicação emocional do cinema repousaria no desenvolvimento das técnicas de movimento de câmera, sendo necessário observar algumas passagens de “Entre nós” para evidenciar o papel central delas na construção do filme.
Quando os amigos se reencontram, Felipe está casado com Lúcia (Carolina Dieckman), antes namorada de Gus (Paulo Vilhena). O ambiente no qual eles se reveem é recortado pelas vigas do chalé. Uma delas cobre temporariamente o personagem de Caio Blat, indício de que a ambientação trabalha na representação de seu caráter obscuro. Além disso, todo o ritual de encontro dos amigos (à exceção de Gus que ainda não chegou) se dá neste espaço, com os pilares de madeira alienando uns dos outros enquanto se abraçam, numa forma de mostrar que os vínculos já não são mais tão fortes e as relações não são tão naturais. Em contrapartida, não há lugar nítido para a focalização, já que a câmera se esforça o tempo inteiro para encontrar o lugar apropriado enquanto os vários personagens conversam. 




O uso de itens verticais que recortam o cenário e obstruem a visão pode ser visto em outras situações, com destaque para o trecho quando Silvana e Felipe conversam sobre a inspiração do primeiro livro deste, enquanto outra tora grossa de madeira separa ambos. Da mesma forma, depois da primeira cena com Lúcia, à noite, quando Felipe toca no assunto do livro de Rafa (em uma referência clara ao coração delator de Poe), ele anda por meio das árvores, mostrando que o recurso nada tem de arbitrário. Finalmente, quando Gus fala que sua vida não vai bem, conversando com Drica, os pilares que seguram a estrutura são substituídos aos poucos pelas árvores da região, por onde eles caminham enquanto conversam. 




Muitas vezes essa refração do foco, que sinaliza para a própria representação opaca das coisas, está presente nas cenas em que não vemos as personagens, mas seus frágeis reflexos em determinadas superfícies, com especial atenção na cena quando os amigos tiram a última foto juntos. Neste momento, nós vemos seus reflexos na janela, indicando que eles já são uma representação pálida e enviesada de si mesmos. A passagem de uma imagem nítida para outra desfocada é um tipo refinado de focalização externa, na qual a ocularização nos entrega mais do que as personagens podem saber, o que enfatiza a maneira distorcida na qual os observamos, algo fundamental para o desfecho do filme. No tempo presente, por seu turno, a fotografia tirada pelos amigos é vista através da janela, observada por Felipe, deixando claro que a primeira decisão perceptiva também não foi aleatória.



 
A natureza fantasmática da imagem do grupo entre aquilo que são, o que foram e o que fingem ser pode ser vista em outros momentos. Ao passarem por uma quadra de tênis, feita no terreno de Silvanaconstruída depois do último encontro dos amigos, mas ainda assim já abandonada, o que é revelador do caráter catastrófico e indócil do tempo Casé (Júlio Andrade) e Drica (Martha Nowill) simulam que jogam com raquetes invisíveis, imitando os sons dos lances com a boca. Esta atitude de simular algo ausente é simbólica da dinâmica do grupo, que tenta, em certa medida, fingir uma relação que também não é real. Outra prova disso, entregue desta vez pelo roteiro, é o fato de Gus chegar rebocado na casa onde se encontrarão, explorando o desconforto de um personagem que, possivelmente, não queria estar ali. Outros recursos podem revelar aspectos dos personagens que só conheceremos em momento mais adiantado do filme, como quando Felipe esbraveja, ao observar a foto que ilustra a orelha de seu livro: “Cara de picareta”, “cara de moleque”.
Os personagens de “Entre nós” se relacionam em situações de banquete, onde todos falam e opinam sobre vários assuntos. Muito desta dinâmica remonta a mestres do diálogo fílmico, com atenção para Almodóvar, Cassavetes e, sobretudo, Robert Altman. Introjetar o alimento é simbólico da descida em profundidade dentro de si. Conforme interagem, se revela também o mistério maior do filme: o livro de sucesso publicado por Felipe fora escrito na verdade por Rafa. A câmera, na linha do que Munsterberg imaginou, tenta reconectar esses seres degradados, distantes dos sentidos autênticos do mundo, e este esforço fica evidente na maneira como se aborda a relação dos convivas dentro da casa, no primeiro jantar. A câmera move-se horizontalmente pelo espaço, na tentativa de se integrar o máximo possível aos diálogos e situações. Ela é, portanto, meio livre, meio comprometida, quebrando, obviamente, a unidade de ponto de vista a todo o momento (como os já tradicionais travellings ao redor da mesa cheia de indivíduos, utilizados por muitos diretores), motivada pelas várias personalidades que deve captar, acreditando, assim, no deslocamento espacial da câmera como afixador e hierarquizador de valores, a exemplo da cena depois do jogo de futebol, quando ela segue os três protagonistas homens até que eles se reencontrem com as três personagens femininas principais. É justamente pelo sentimento de integração e desintegração com o espaço, que a câmera também vivencia, que não há praticamente nenhuma “panorâmica puxada” ao longo do filme.




 A multiplicidade de valores tematizados pode se impor por meio da montagem paralela, algo presente no trecho em que a “cafona” (como diz Silvana) canção “Total eclipse of the heart” é executada em CD, enquanto Cazé e Gus discutem o que é alta culinária e carnes nobres. Nessa cena, a câmera oscila entre perseguir o personagem de Paulo Vilhena e de Martha Nowill (que dançam), a bandeja de bruschetta preparada por Cazé, ou o personagem de Caio Blat se encaminhando para desligar o rádio. Ainda na mesma sequência, Silvana e Cazé discutem se a década de 80 e 90 foi a “merda” que o segundo acha, ou o ambiente no qual as pessoas se expunham, segundo a amiga. A discussão termina com Felipe defendendo que para fazer arte não é necessário viver seu conteúdo (“Para escrever um policial terei que matar uma pessoa?”, diz o sujeito) e com o desastre da carne nobre, queimada por Gus que se distraiu enquanto dançava. Esta alternância de sentimentos , opiniões e objetivos estabelece várias frequências em cena, difíceis de serem dinamizadas pela focalização, já que muitas narrativas e vozes são contemporâneas no quadro. Além disso, no plano simbólico, o desconforto de Gus ao servir a carne desastrosa e maquiada para os amigos, sintetiza mais uma vez incômodo que todos sentem de terem se tornado aquilo que não planejavam.




Esta oscilação de ângulos e da indefinição sensível do que é central e do que é lateral para câmera e para os personagens atinge o ponto culminante mais ao fim da obra. Depois que Silvana descobre o plágio de Felipe, este tenta possuir a amiga, por quem ainda é apaixonado, no mesmo lugar onde Rafa salvara um pássaro em 1992 diante dos dois. Silvana segura o “seu” livro nas mãos. Observamos a foto do autor jovem em primeiro plano, enquanto sua versão deturpada do presente participa de uma de suas cenas mais patéticas. Albert Laffey, um dos pioneiros na teoria cinematográfica, já explicou que a câmera é um artefato paradoxal, pois insere o “eu” na narrativa (nosso ponto de vista) como forma de assimilação perceptiva, mas ao fazer isso impede a totalidade da identificação simbólica, já que é sempre um recorte. A cena envolvendo o personagem de Caio Blat leva esta condição ao limite do perverso, pois sabemos que não deveríamos estar ali, mas, só porque estamos podemos reconhecer o nosso lugar (e posicionamento) em relação ao conflito decisivo do filme.




Dentro deste enredo, é angustiante que os cortes de cena não sejam nunca seguidos de mudanças espaciais significativas. Tudo se passa no mesmo terreno, o que fortalece o “aqui mesmo” (previsto por André Gaudreault e François Jost) do discurso cinematográfico, algo irônico já que ele sempre elabora seus conteúdos no presente, mesmo quando passados. Todas as disjunções espaciais provocadas pelos cortes são, por sua vez, “proximais”, o que salienta a comunicação vetorizada dos seres (entramos em quartos, na sauna, na piscina atrás deles...).
A incomunicabilidade revelada na dinâmica do grupo (ao fim, alguns deles nem suspeitam do segredo de Felipe), a ausência de eixos para a focalização, o uso de elementos do espaço para alienar uns personagens dos outros, criando outros enquadramentos dentro do quadro geral, tudo isso pode ser contextualizado por certas constantes temáticas do filme e que devem ser observadas. Começamos pela tipologia dos protagonistas. Todos de classe média urbana, obrigados a resolver seus problemas em um ambiente rural. Em certo momento, o conflito campo/cidade se estabelece, a exemplo do caseiro que cobiça Drica (e a perícia dos “peões” da casa no futebol, massacrando o trio masculino principal). Na mesma cena, possivelmente para enfatizar o sentido anterior, Drica brinca que Silvana é “senhora do campo” e fabula sonhos eróticos no qual ela transa com o jovem caseiro. A mentalidade da vida rural também é metaforizada no pássaro que Rafa salva, símbolo para a liberdade que tinham (é o personagem de Lee Taylor também quem abraça uma árvore, ainda no início da película), e no cascudo de patas para o ar que Felipe se recusa a ajudar, metáfora para a estagnação de suas vidas, como parece sugerir a cena final.




Nesse sentido, por trás do filme se repensa o caráter dilacerado de nosso progresso, feito às pressas após a colonização (Silvana comenta que a prática do topless ainda não é bem visto no Brasil, acostumada que está com costumes europeus) e impulsionador de uma cultura eternamente dependente da natureza (em seus principais símbolos), construída no hibridismo da alta cultura com a baixa. Talvez por isso sua trilha sonora principal seja “Na asa do vento” (música que Cazé executa duas vezes ao violão, acompanhado por todos, ainda que, na segunda vez, ela seja interrompida pela trilha incidental de mistério), popular sucesso de João do Vale, mas apresentada aqui na versão vanguardista de Caetano Veloso, na época do polêmico disco “Joia”. Ora, a instabilidade emocional do grupo é contraparte de nossa instabilidade histórica e cultural. Não por acaso, no último jantar na casa, Cazé e Drica puxam a canção tema da vitória de Lula nas eleições de 2002, ao mesmo tempo em que discutem sobre quem transaria com quem, a copa de 98, o PT e a salvação do país, e onde estavam na tragédia do onze de Setembro (Drica, emblematicamente, diz ter visto tudo em meio à alucinação após uma endoscopia, o que atesta a forma parcial e lacunar com que a história se relaciona com cada um deles). Logo o tópico histórico se torna pessoal “Quer dizer que você sujou a mão para chegar onde chegou?”, pergunta Felipe ao ouvir Cazé dizer que ninguém ascende socialmente sem se corromper. Esta é a angústia maior. A derrota dos sujeitos imersos no decorrer da história geral não desacelera seu andamento teológico e unilateral. O resto é rastro.
Por causa disso, cabe ao filme conviver com outro paradoxo, este próprio da linguagem cinematográfica, como já apontaram Jost e Gaudreault :

Até mesmo quando as palavras apresentam os eventos como já acontecidos no passado, o rolo das imagens do filme só pode mostra-los no decorrer de sua realização: esse tipo de contradição existe tanto na época do cinema mudo, quando a cartela conta um fato já acontecido e a imagem mostra esse mesmo fato acontecendo, quanto no cinema sonoro, notadamente com a utilização da voz over: certas vozes over estão de fato no imperfectivo, e por essa qualidade coincidem com a própria natureza da linguagem cinematográfica

A unidade de espaço do filme só enfatiza a anormalidade do “aspecto indicativo” no cinema. A maior tragédia dos personagens (em especial de Felipe) é viver tudo em aspecto processual, inacabado e progressivo. Na segunda vez é farsa, disse Marx. Mas a última imagem do filme é um close (carregado de emoção Munsterbergiana) no cascudo sendo posto finalmente de pé pela mão amiga de Gus, referência à metamorfose, de Kafka, citada por Rafa e Felipe no início do enredo. O bicho no início de sua caminhada é o indício da catástrofe da história (dos personagens, do país) que não para para olhar suas ruínas, pois o movimento é sua única salvação de si mesmo, ainda que exclame: “Que puta saudade do que somos”.