Os
dois textos que se seguem foram escritos há mais de dois anos, quando do
lançamento de Django livre, de Quentin
Tarantino. São postados aqui dentro da série “À espera de Hateful Eight”, para preparar
o público para o novo filme do diretor norte-americano, que será lançado até o
final do ano. Eu escrevi o primeiro, a partir da minha visão do filme; Daniel
escreveu o texto subsequente, uma espécie de réplica que não teve uma tréplica,
já que em geral concordei com quase tudo de sua brilhante resposta, menos a
questão da janta – continuo a sustentar, embora nunca tenha revisto o filme,
que é uma cena que precisava de uma melhor resolução. Um e outro elemento dos
dois textos estão desatualizados, mas foram mantidos, em respeito ao espírito
original do tempo da escrita. Boa leitura, Mauro.
Comparando Django
Mauro Nicola Póvoas
Aqui
quem fala é um fã quase de primeira hora de Quentin Tarantino, que já escreveu
sobre seus filmes, que possui os filmes dele em DVD em casa, que tem livros
sobre ele e que o defende daqueles que veem nele quase que apenas um diretor que
abusa de uma perigosa estetização da violência. Lembro-me, nos idos de 1994,
saindo do Cine 7 de Setembro, no Calçadão de Rio Grande, um tanto estupefato
por Pulp fiction – Tempo de violência
(PF). Não conhecia ainda Cães de aluguel
(CA), seu primeiro filme, mas pensei: “Esse cara veio para ficar”. Jackie Brown (JB) foi mais ou menos uma
decepção, mas o desbunde da exuberância barroca de Kill Bill (KB) (considerando os dois volumes como um filme só),
seguido do impecável Bastardos inglórios (BI),
deixou claro que o homem era um gênio do cinema.
Agora,
finalmente, no dia 16 de março de 2013, consegui assistir a Django livre (DL), no Cine Dunas. Qual a
minha sensação hoje, quando escrevo? Decepção não, que é forte, mas certo
incômodo, um déjà-vu. Pode parecer
que não gostei do filme, pelo contrário, DL é bom, até porque o diretor já está
no panteão daqueles que têm algo a dizer, que têm uma estética própria. Dos
cineastas vivos, quem está ao seu lado? Poucos, Almodóvar, Allen, Herzog,
Haneke, Von Trier, Lynch, e poucos mais.
Neste
ponto, quero fazer a minha lista pessoal de preferência dos filmes do diretor
nascido em Tennessee. Revi PF e JB há duas semanas; a cada volume de KB vi 2 ou
3 vezes no cinema; BI vi 2 vezes, uma no cinema, uma no DVD. À prova de morte (PM) vi recentemente,
assim como revi há pouco Cães de aluguel
(CA). PF continua a ter o frescor de 19 anos atrás, 1º lugar. KB vem em 2º, BI
em 3º, DL em 4º, empatado com JB. CA e PM, por serem produções menores, não
considero aqui.
E
por que DL aparece em 4º nessa minha lista pessoal? Isso não é demérito,
levando em conta que o filme mais fraco de Tarantino é melhor que 95% da
produção mundial. Mas fiquei matutando o porquê, e vou tentar apontar alguns
aspectos.
Já
falei ali em cima de déjà-vu, acho
que é mesmo isso. O filme retrabalha clichês do faroeste, mas ao colocar um
negro e a escravidão como protagonistas, faz uma viragem espetacular em gênero
tão clássico e conservador. Mas não é isso, a sensação do já-visto é em relação
a outras obras do mesmo diretor, aí é que a coisa, na minha opinião, começa a
ficar perigosa. Só Woody Allen consegue fazer, com sucesso, sempre o mesmo
filme.
Muito
do que está em DL emula algo já dito antes nas produções anteriores do diretor.
A estética e o mito tarantinescos explicam-se por uma série de tópicos, que ao
se repetirem podem estar chegando ao cansaço, pelo menos para aquele público
mais fiel: a presença negra, a estetização da violência, a vingança, a
repetição de algumas cenas pontuais, a homenagem a um subgênero, a trilha
sonora, os atores, a longa extensão, as múltiplas identidades.
A
presença negra já estava em PF e,
especialmente, em JB, embora aqui seja trabalhada de forma mais incisiva, ainda
mais que em conjunto com a estetização
da violência, tópico sempre questionado em suas obras. Mas por estar
associada aos negros, essa violência talvez encontre, dos filmes todos de
Tarantino, a sua mais perfeita justificação (em BI, o nazi-fascismo também é
uma justificativa e tanto para o banho de sangue impetrado), pois um negro
matar brancos, depois das barbaridades cometidas por estes, não parece absurdo
e até rimos e ficamos felizes quando a família de Candie e seus capangas são
trucidados por Django – tudo dentro da lógica oferecida pelo filme, claro.
Sobre o protagonismo, se em JB, desde o início, temos uma negra como personagem
principal, em DL há uma paulatina transformação de Django em protagonista,
tomando o lugar do Dr. King Schultz, até a morte deste, o que anuncia a
proximidade da alforria definitiva e muito bem alegoriza um necessário de empoderamento
dos negros na sociedade atual.
(Um
parêntese: é preciso rever Manderlay,
de Lars Von Trier, que também traz a questão escravocrata americana, aí sob a
visão de um diretor europeu; o filme, tenho a lembrança, é bastante desconcertante.)
A
dualidade gilbertofreyreana, da casa-grande e da senzala, fica muito clara na
fazenda de Candie: de um lado, DiCaprio como um personagem revoltante, a casa-grande
em pessoa, pertencente a uma aristocracia que em breve começará a entrar em
decadência (e que não sabe falar Francês, ainda por cima!), de outro, Samuel L.
Jackson, envelhecido pela maquiagem, na mais perfeita encarnação da senzala que
se imiscui na casa-grande, “pegando”, por osmose, todos os vícios, preconceitos
e tiques do sinhozinhos (por isso, insisto, é preciso rever Manderlay – essa relação perigosa e pegajosa
aparece muito bem lá). Anotaria que talvez seja um pouco forçada a convivência tão
íntima que Stephen, o personagem de Jackson, estabelece com Calvie Candie,
levando em conta o desprezo e o rancor dos brancos para com os negros, e
vice-versa.
A
vingança já tinha sido explorada em
KB, e como fazer algo que traga consigo o cheiro da novidade depois de a Noiva trucidar
todos que a traíram? A vingança é um prato que se come frio, mas Tarantino em
DL requenta o já requentado, e se não fica indigesto, fica o gosto de “Outra
vez? Não daria para variar o cardápio?!” Tudo bem, a vingança é mesmo tema
universal, garantia de emoção e de repercussão junto ao espectador, ainda mais
que nas películas de Tarantino o assunto vem sempre regado com cenas
sanguinolentas, manejadas com estética cinematográfica perfeita, herdada, por
sinal, dos mestres Sergio Leone e Sam Peckinpah.
Em
algumas cenas pontuais, também
parece que estamos vendo o mesmo filme já assistido antes. A antológica e
absurda cena no final de KB I, em que a Noiva trucida 100 vilões incautos, volta
no tiroteio também antológico e absurdo em que Django acaba com a mansão Candie
e com metade dos homens da propriedade. Já as ótimas cenas das conversas nas
mesas de um restaurante e de um bar, em BI, reaparecem na conversa na janta em
DL, um pouco antes do desmascaramento dos planos da dupla. Cumpre dizer que a
cena em DL não é bem construída, não funcionando a contento, pois ficamos
pensando por que Candie não manda matar os dois, mais Brunhilde, ali mesmo, na
hora? A dupla não tinha nenhuma carta na manga que funcionasse como moeda de
troca. Por outro lado, curiosamente, a fixação por pés femininos, presente em
todos os filmes do diretor, não retorna aqui.
Mas
é óbvio que um diretor como Tarantino nos dá algumas cenas muito boas, em DL, em
especial aquelas que cutucam com vara curta os americanos e seu estilo de vida,
as duas com o Dr. Schultz: no momento em que Django diz que por ser alemão, ele
não está acostumado com cachorros comendo pessoas, algo normal para os
americanos, e quando o Dr., indignado, pede que a tocadora de harpa interrompa
a execução de Beethoven – poucas vezes uma cena mostrou tão cabalmente a
questão civilização x barbárie; europeu x americano.
É
mais do que sabido que Tarantino conhece tudo de cinema, fruto muito de seu
trabalho, na juventude, numa videolocadora: desde o de arte europeu até o lixo
Z saído das cloacas de Hollywood. Em especial este cinema-lixo o diretor
conserva no lado esquerdo do peito, tanto assim que uma das chaves de leitura
de sua obra é relacionar cada um dos filmes que fez aos diferentes subgêneros cinematográficos: CA e PF
conversam com o filme de gângster/policial, do submundo de drogas, jogo ilegal,
prostituição; JB deve o que é ao blaxploitation,
gênero de filmes dos anos 70 que tinha os negros como produtores e receptores preferenciais;
KB dialoga com os filmes de samurai e kung-fu; BI recupera os filmes de guerra;
e DL repagina o faroeste, ou melhor, o sub-subgênero do spaghetti-western. Há ainda PM, filme assumidamente menor, que ele
dirigiu entre KB e BI, um misto de road-movie
e serial-killers – assim como o são Amor à queima-roupa e Assassinos por natureza, os quais não
dirigiu, apenas assinou o roteiro. Pode-se pensar, como os detratores apontam,
que realmente ele nunca traz nada de novo, mas somente, antropofagicamente, retrabalha
e enverniza o velho, para as massas atuais?
A
trilha sonora continua maravilhosa,
com pérolas esquecidas, músicas que casam com as cenas à perfeição, num
trabalho de garimpo em vinis velhos que, imagina-se, demanda um tempo
considerável. É obrigação ter as suas trilhas sonoras em casa, embora, óbvio, as
músicas funcionem melhor coladas às imagens. Mas até isso acaba cansando um
pouco em DL, num uso da música que, embora perfeito, chama a atenção pela
mesmice do efeito em relação aos outros filmes do diretor.
Até
mesmo os atores repetem suas
aparições, colaborando na sensação de mais do mesmo – S. L. Jackson, em PF e
JB; Christoph Waltz (que ator!), em BI. Ora, Tarantino é ótimo diretor de
atores, vide a ressurreição na carreira de Travolta, a partir de PF, e os dois
Oscar de C. Waltz (BI e DL), que sob o comando de Tarantino torna-se um
gigante. Aliás, a produção milionária com “cara” de filme B, que conta com os
maiores astros americanos – Uma Thurman, John Travolta, Bruce Willis, Samuel L.
Jackson, Robert De Niro, Brad Pitt, Leonardo DiCaprio, entre outros –, é um dos
itens de culto em torno do diretor.
E
mesmo um dado que pode ser considerado banal entra em cena, a extensão dos filmes – fora os dois de
menor custo de produção, CA e PM, todos os outros passam, e muito, das 2 horas
regulamentares de um filme. PF e JB ainda trazem um dado curioso: ambos possuem
exatos 154 minutos; BI, 153min. Mas DL ultrapassa esses todos, com 165min., e o
filme acaba trazendo certo cansaço ao espectador desavisado, em decorrência de
algumas soluções de continuidade que talvez pudessem ser melhor exploradas –
como as idas-e-vindas dos personagens pelos diferentes espaços do território
americano. Uma explicação poderia ser que a montadora de todos os filmes
anteriores do cineasta, Sally Menke, morreu em 27 set. 2010, ficando o encargo
da edição de DL com Fred Raskin. Será que essa mudança acarretou alguma mudança
de ritmo, levando em conta a importância da montagem para resolver, ou
destruir, um filme?
Por
fim, as múltiplas identidades por
ele mostradas – mulher, negro, estrangeiro –, contrapondo-se ao american way of life, junto a um humor
paródico que desconstrói a todo momento aquele clima que deveria ser “pesado”,
garante a aura de pós-modernidade indispensável para uma obra que quer dialogar
com o público e a crítica contemporâneos. Entretanto, mesmo o tom irônico e o
recurso de dar voz ao Outro parecem um tanto esgotados em DL. Até porque, se há nos filmes de Tarantino a
crítica ao americanismo expresso na sigla WASP (branco, anglo-saxão,
protestante), também é inevitável lembrar que o diretor é sempre ambíguo, no
culto que seus personagens demonstram à violência, às armas, ao dinheiro, ao
individualismo, itens e hábitos tão arraigados nos Estados Unidos da América.
Esgotados,
usei no parágrafo acima. Esgotamento. Eis a palavra que eu vinha perseguindo
desde o começo deste texto. A impressão é que Quentin Tarantino chegou numa
encruzilhada, momento em que é necessário escolher um novo caminho a ser trilhado
– o da reinvenção – sob pena da estagnação, do esgotamento criativo. Não à toa,
o próprio Tarantino entra em cena no final do filme, e metaforicamente explode,
numa prova de que é preciso seguir outros rumos. Aparentemente, e só
aparentemente, o que foi dito nesse parágrafo poderia ser contrariado com dois
dados: o Oscar de melhor roteiro original de 2012 para Tarantino, por DL, quase
20 anos depois do primeiro, por PF, e o fato de o filme estrelado por Jamie
Foxx ser um sucesso de público, pois é a maior bilheteria do diretor no Brasil – 1.120.510 espectadores até 15 de março de 2013. Mas são dados relativos, se se levar em conta os interesses político-financeiros
da Academia, mais do que os efeitos artísticos de suas escolhas, e o gosto
médio, por vezes bastante duvidoso, do público.
Esgotamento.
Eis realmente a palavra. Só pode mesmo vir o esgotamento, depois que, no final de
BI, o Tenente Aldo Raine diz, do escalpelamento que terminou de fazer (e
Tarantino também fala pela boca do personagem de Brad Pitt, sobre o filme que está,
naquele exato momento, acabando): “Eis a minha obra-prima”. Realmente, BI é uma
obra-prima (conforme já disse, para mim, não é o melhor de Tarantino, mas
tecnicamente é impecável). Depois da perfeição, do auge, difícil a superação, e
o nosso diretor, acomodado, preferiu se esconder no que ele já sabia e
dominava. Como sair do labirinto do já-feito e testado com sucesso? Esperemos,
com curiosidade e ansiedade, os lançamentos futuros. Todavia, levando em conta
que o seu próximo projeto anunciado é Kill
Bill III, fica a sensação de que talvez não venham, daí, ainda, grandes
novidades.
Comparando meu Django com o teu
Daniel
Baz dos Santos
Tentarei
pensar tuas opiniões tendo saído muito satisfeito do cinema após assistir a Django livre, ainda que também não
considere este o melhor Tarantino (Pulp
fiction e Kill Bill também
encabeçam minha lista). Tentarei também não deixar o fato de ser um aficionado
por westerns (italianos, norte-americanos e até os “farofas” cariocas)
influenciar demais minhas contribuições – quentes, pois vi o filme no dia
15/03/13 e escrevo em 17/03/13.
Senti
que tua principal censura ao filme se apoia em certa fórmula que Tarantino
parece repetir exaustivamente em Django
livre e a sensação de “já visto”, que pode ser bem nociva à experiência
cinematográfica. Concordo com a facilidade dos “clipes” musicais (mesmo que a
cena da pré-Ku Klux Klan tenha me marejado os olhos pela referência a Griffith)
e com o repertório de ideias reaproveitadas que elencas, ainda que tenha lido
essas reincidências temáticas de forma positiva. Contudo, insisto numa mudança
gritante, que insere este filme num fenômeno avesso à poética de Tarantino que
conhecemos até então, ou seja, a linearidade. Talvez pelo fato de estar sem sua
fiel montadora Sally Menke (grande responsável, entre outras cenas, pela genial
abertura de BI), talvez por achar que estava na hora de investir em uma trama
de formação e com forte carga histórica, utilizando as virtudes da cronologia,
o diretor investe na sequência natural dos eventos, o que funciona muito bem
para criar a tensão existente no enredo, visto que nunca sabemos como os demais
personagens irão agir ao ver a insólita dupla protagonista. Guardar o “depois”
para depois me parece ser fundamental neste filme e admiro Tarantino por ter
aberto mão de uma das características que o consagrou.
Além
disso, se não estão presentes certas constantes (como o fetiche com os pés),
surgem novos elementos que passam a se tornar cada vez mais comuns em sua
gramática. O primeiro exemplo traz de volta o olhar fetichista para as bebidas
degustadas pelos personagens, enquanto acontecimentos importantes se
desenrolam. Estava no leite oferecido pelo monsieur
LaPadite a Hans Landa e retorna agora na cerveja servida a Django pelo
caçador de recompensas. O pormenor enfocado intensifica o suspense, além de
impedir que tenhamos acesso à verdadeira hierarquia semântica das sequências,
já que o, aparentemente, desimportante ganha o primeiro plano.
Outro
item que retorna é o uso das várias línguas utilizadas pelos personagens,
central em BI (e acredito que iniciada na famosa discussão a respeito do royal with cheese em PF) e que volta como uma forma de esconder as várias
camadas discursivas em torno dos conflitos vividos pelos personagens. Aliás,
com respeito à origem nacional de cada um, achei genial o fato de um sulista
revolucionário adversário de um alemão nazista em BI aparecer invertida,
através das figuras do alemão esclarecido e libertador oponente do terrível
senhor de escravos do sul dos Estados Unidos. E o experimento com diferentes
idiomas também se articula com a encenação dentro da encenação, com as
personagens tendo que assumir identidades fictícias (também já presente desde
CA, em que Tim Roth aprende a representar um bandido para se infiltrar no grupo
de criminosos).
O
universo intertextual exposto pelo diretor também ainda me impressiona e faz
valer anos assistindo a filmes de faroeste terríveis que poderiam representar
muita vida jogada fora não fosse realizações como esta. O pastiche é uma
conduta em Tarantino. A bricolage é a
bengala poética de um mundo cheio de verossimilhanças. Basta lembrar que, em Kill Bill, faroeste (e a revolução de
seguir um plano detalhe por um plano geral abertíssimo), filmes de Kung Fu (e o
ato de mexer no foco da câmera durante a cena, comum nestes filmes), animes, e
até melodrama, convivem no mesmo universo. Por isso, fico feliz que, quando
Django aprende a atirar, surja uma referência à emboscada de Era uma vez no oeste. Ou que o projeto
de Calvin Candie e sua “Mandingo fight” remeta ao Mandingo, o fruto da vingança, filme horrível, mas que tem o seu
melhor aproveitado pelo cineasta. Ou
que a ternura da convivência entre King e Django seja exposta em uma sequência
ao som de “I got a name”, remetendo à cena mais meiga de todos os westerns, ou
seja, a da bicicleta em Butch Cassidy e
Sundance Kid. O interesse de criar um universo autoral orgânico de filme a
filme se apoia no organismo já estabelecido de outros filmes. Dessa forma,
Tarantino usa o recheio de filmes antigos para produzir a cuidadosa casca de
suas produções. Mais do que isso, em Django
livre, outras camadas são adicionadas as já usadas, como o cartunesco
(Brunhilda tapa os ouvidos com a ponta dos dedos antes da explosão) e a cultura
popular mais massificada e gratuita (Django fica de frente para a explosão,
contrariando o chiste pop de que “cool guys don’t look at explosions”).
Fazendo
um último comentário a respeito do intertexto, acredito que a releitura do
original de Franco Nero (que faz uma ponta muito boa no novo filme) é eficaz. O
que movia o personagem original também era a vingança, mas sua mulher já havia
sido morta, luto representado no caixão arrastado pelo herói durante suas
andanças. A mudança de tom, portanto, é contundente e se afasta da
desesperançada trajetória do filme original. Quando King assobia o tema de
1966, o faz errando algumas notas, o que pode sugerir uma consciência na
diferença entre ambas as obras.
Pensando
nas tuas críticas mais severas... Não achei a cena da janta mal construída.
Acho coerente que um sulista ignorante, metido a culto e ressentido com a finesse de King julgue mais divertido
deixá-lo vivo após engambelá-lo e tomar todo seu dinheiro, o que parece claro
no sorriso escarnecedor de Candie após a transação e na sua posterior irritação
ao descobrir que sabe menos acerca de Dumas do que julgara. Acho também que,
assim como houve com Aldo Reine, Tarantino fala pela boca do doutor King no
momento em que este mata Calvin e diz “Sorry, I
couldn't resist.”, o que desencadeia o banho de sangue presente em Django.
A frase pode ser o manifesto de um desejo
irrefreável de Tarantino ao nos presentear com o tiroteio absurdo. Se ele
lembra outras cenas já dirigidas pelo diretor, teve para mim a surpresa de
fugir do molde Sergio Leone (o que era esperado e fora amplamente aproveitado
em KB) e ir para uma vertente mais Sam Peckinpah ou ainda remetendo a filmes
policiais asiáticos adorados pelo diretor (o truque de pular de costas na porta
enquanto atira – empreendido por Django – é o mesmo utilizado pelo matador de The killer, de Jonh Woo). Além disso, um
item comum da gramática tarantinesca, os longos travellings, é deixado de lado, o que também dá um andamento
diferenciado para este filme que confia mais no tempo entre os cortes do que no
tempo interno das tomadas. Eficaz para um roteiro
tão episódico.
Falando,
por fim, da violência, creio que, se pararmos para pensar, somente três cenas
devem incomodar pelo excesso violento: a dos cães, a do “mandingo fight” e o
tiroteio final. O que já acho que reduz o furor de certos críticos. Sempre vi a
violência de Tarantino como mais do que um simples fenômeno de estilo. Além
disso, acho equivocado dizer que se trata de uma temática de sua obra. Nele, a
violência nunca é um fim, mas um meio. Resta saber então se ela é justa ou não,
o que é solucionado pela vingança e, por isso, o diretor parece não conseguir
abandonar este tópico. Ela justifica o meio. Basta comparar a violência de
Django com a tortura em CA e vê-se a diferença.
Além
disso, em termos sociais, a violência não é apenas uma questão de descrição,
mas de legitimação. Na alardeada cena do tiroteio, um pistoleiro é baleado em
pontos não críticos e se recusa a morrer, enquanto outro tem seu corpo
destruído para servir de escudo para Django. Cada corpo serve a um fim muito
diferente (ainda que a violência seja a mesma) e nenhum deles se aproxima do
agonizante mister Orange de CA, outro “cadáver” atirado no meio da tela e que
dá sentido à dissolução da gangue no filme de estreia do diretor ou do pobre
Martin em PF (talvez os dois polos do gosto mortuário do cineasta). O cinema de
Tarantino sempre vai provocar a revisão de nossos horizontes estéticos (e
éticos) com seus banhos de sangue e violência extremada. Ainda acho isso
válido.
Por
todas estas razões não senti o “esgotamento” descrito por ti. Entendo teu
ponto, e tua análise da cena da explosão do diretor foi brilhante, além da
desenvoltura com que percorres a obra dele. Contudo, ainda aguento o bom e
velho Tarantino, admitindo, entretanto, que já estamos em tempo de associar a
ele este adjetivo: “velho”. Quem sabe numa segunda visita ao filme, sabendo do
que se trata, tu não possas curti-lo melhor, sem expectativas. Estou ansioso
pelo Kill Bill 3. Ainda que,
aparentemente, com este projeto o cineasta só tenha conseguido tua futura
curiosidade, de mim (graças a Django
Livre) ele ainda tem a atenção.
PS1:
releio este texto no dia 23/03/13. Seguindo tua orientação, ontem fui rever Manderlay. O projeto emancipacional de
Grace realmente lança outra face e parece complementar a corrosiva crítica de Django Livre. Interessante que nele a
violência é uma ferramenta para sustentar a mudança (quando os gangsteres vão
embora, tudo desmorona).
PS2:
quanto à relação de Stephen e Calvin, interpretei que o negro é o grande senhor
de Candyland. Na cena em que ele revela o plano dos protagonistas ao seu
senhor, o personagem perde todas as características de criatura alquebrada e
senil, o que parece demonstrar que ele também representa um papel conveniente
na fazenda.