Mauro Nicola Póvoas
Vol. 1 – Vi, logo me deleitei
É na comparação com outros filmes que Kill
Bill Vol. 1 aposta suas fichas, já que a nova película[1]
de Quentin Tarantino é uma homenagem aos spaghetti-westerns,
gênero que explodiu na Itália em meados nos anos 60, e aos filmes Z de artes
marciais made in Hong Kong, cujo
expoente foram os poucos e hoje clássicos filmes que Bruce Lee realizou; em
suma, a todo o mais belo lixo que o cinema já conseguiu regurgitar. Estranho:
aquele espectador que vai ver e se maravilha com o filme de Tarantino
provavelmente torça o nariz para (ou mesmo nunca tenho ouvido falar de) O dólar furado ou Operação Dragão. Claro que a assinatura de Tarantino vale mais do
que o conteúdo.
No entanto, se é uma homenagem a um tipo de filme que a maioria abomina
ou despreza, por que a empatia? Talvez porque seja paródico? Mas paródico do
quê? Dos filmes supracitados não é, pois Tarantino não cansa, nas entrevistas
de divulgação do filme, de mostrar seu amor por esses filmes. Talvez ele seja,
isso sim, hiperbólico: eleva ao cubo o exagero, o clima trágico e o nonsense que estavam lá nos originais.
Agora, qual a intenção do diretor estadunidense com isso? Dar status a categorias eternamente
relegadas do panteão da “Sétima Arte”? Se sim, aí teríamos um “estilizar para
se tornar arte”. Neste momento, uma metáfora talvez defina com mais exatidão o
que seria o filme: Kill Bill é como
uma bolha de sabão, estrutural e formalmente perfeito e belo, mas de conteúdo
pífio, para não dizer vazio[2].
Esteticismo é perigoso sim, e o uso da comparação metafórica da bolha contém já
uma depreciação a esse efeito físico, o da ausência de conteúdo, falta grave
para analistas escolados, formados em Letras, Comunicação Social, História,
Sociologia e cursos afins, ou autodidatas com vivência de leitura e frequência
em salas de cinema.
Se a perfeição absoluta beira o vazio, como fica o espectador ao gostar
de um filme exatamente por que ele é estilizado? A primeira, e talvez única
saída, é procurar uma proposição no filme. Existe? E se sim, qual é? Ela atinge
seu objetivo, ao final?
Vamos começar
do princípio. Peguemos dois apologistas da violência em suas obras, e dos quais
ninguém discute a importância, seja para a história do cinema americano, Sam
Peckinpah, seja para a história da literatura brasileira, Rubem Fonseca.
A violência estilizada de Peckinpah parece emular a decadência dos EUA,
já que seus faroestes perdem a epicidade inerente em muitos dos filmes desse
gênero clássico, no momento em que coloca heróis crepusculares (degradados, na
terminologia luckasiana) num mundo que não é o mais deles, como acontece em Meu ódio será sua herança[3];
já o pai de família americana vivido por Dustin Hoffman em Sob o domínio do medo demonstra que nem dentro dos EUA se têm mais
tranquilidade e sossego (tese que o 11 de Setembro ratifica). Peckinpah mostra
o pesadelo por detrás do sonho do american
way of life. Já Rubem Fonseca, nos contos de Feliz Ano Novo e O cobrador,
dois de seus melhores livros, claramente mostra o caos social que o Brasil
vivia na época da ditadura militar, a qual era vendida pelo governo como
apaziguadora e expurgadora dos males de que a sociedade brasileira estava
contaminada. De novo, a arte como denunciadora de um sonho/mito construído pela
direita. Assim, é claro que a esquerda exultará com estes exemplos, que servem
à sua doutrina. Agora, se formos tentar achar quais são as teses por detrás de Kill Bill, as três primeiras podem provocar
arrepios em espinhas “de esquerda”, pois as premissas seriam:
1)
a violência resolve tudo, sem que seja necessário o
dialogo ou a mediação;
2)
o sentimento de vingança move o mundo;
3)
há uma clara postura contra o multiculturalismo,
afinal, uma norte-americana, supercapaz e competente, extermina orientais,
negros e quaisquer outras etnias que se interponham em seu caminho – em suma:
não se meta com um americano!! Outro detalhe, o big boss, Bill, que mal e mal aparece no primeiro volume, o grande
comandante de todos, é americano. Por outro lado, todavia, o poder da espada é
concedido por um japonês a uns poucos eleitos americanos, entre eles Bill e a
Mamba Negra;
4)
o filme mostra a força da mulher na sociedade moderna.
Essas teses, entretanto, explicam algo, ou mesmo se sustentam? Melhor,
importam? Não é mais possível, àqueles que se pautam pelo academicismo, ver o
filme e somente se deleitar, na fruição pura? Ou essa postura denuncia
alienação?
Recursos os mais modernos para a fruição descompromissada o filme
apresenta às mancheias: cenas excitantes com a tela dividida ao meio; trilha
sonora potente e contagiante, de uma importância fulcral no delineamento da
história, em especial nas doses de injeção e retirada de ânimo do espectador;
jogos temporais com idas e vindas; efeitos especiais inusitados e
inverossímeis, como quando o sangue jorra como de um chafariz dos membros
amputados; um episódio todo em desenho animado; a cena estapafúrdia e
antológica do restaurante japonês, que termina numa imagem digna de um quadro de
H. Bosch, quase congelada, a não ser por gemidos e movimentos de troncos
decepados.
Nesse sentido, o filme é belo, é cinema puro, puro visual,
cinematograficamente bem filmado, plástica e musicalmente perfeito, em que tudo
– a vingança, as brigas, a filosofia barata, as roupas, as falas, o sangue – é
estilizado. Arte pode ser festa para os sentidos, também... Ou a hermenêutica
condenará ao inferno todos aqueles que ousarem não interpretar uma obra?
Pode-se argumentar em torno da excessiva violência do filme, mas como não
fugir da violência se o tema é vingança? Méritos para o Tarantino-roteirista,
que faz um lindo bolo, com cobertura de glacê, de três horas e meia, nos dois
volumes, com um fiapo de história: noiva, ex-integrante de grupo de extermínio,
quer se vingar do mandante e dos executores de chacina no dia de seu casamento.
Pode estar aí parte do fascínio da obra, então. No momento em que ela
mexe com algo intrinsecamente humano, vingança, sentimento ao qual todos as
pessoas estão ligadas, ou possuem em seu íntimo, mas que não exteriorizamos
facilmente. O filme serve como válvula de escape catártica para nos
purificarmos de sentimentos vis, violentos e vingativos? Mesmo que essa catarse
se dê aos borbotões (ou, pensando melhor, exatamente por causa disso), com
litros e litros de sangue falso, saímos aliviados.
Tarantino sempre gostou dos filmes B, tanto que, em suas produções
anteriores, ele homenageou, de uma forma ou de outra, os filmes policiais
(gênero B por excelência) nas suas mais diversas variantes: detetives, pulps, gangsters, blaxploitation
etc. Gêneros e subgêneros tipicamente americanos, o diretor pôde, sem maiores
preocupações, se circunscrever em terreno conhecido. Ao adentrar em gêneros que
encontram seus maiores nichos em países outros que não a América, dúvidas pairam,
e o que nunca tinha sido perguntado, emerge: será Tarantino um reacionário ou,
ao menos, um alienado? A ausência de questionamentos político-sociais em seus
filmes apontaria para essa conclusão? A falta de uma maior conversa com o Outro
aventaria essa possibilidade?[4]
Vol. 2 – Para quem gosta de cinema
Há pouco estreada nas telas brasileiras, a continuação da saga de Black
Mamba (ou Arlene Plimpton, ou Beatrix Kiddo), desconcerta, tomando um rumo
oposto daquele trilhado pelo primeiro volume. A busca da vingança continua, mas
agora recheada mais com os famosos diálogos caudalosos de Tarantino e menos com
pancadarias acrobáticas. A história é mais climática, menos exuberante. A
própria trilha sonora perde em importância: um exemplo pode ser visto na música
de abertura deste segundo volume, bem menos significativa que o grande início
do primeiro, com a soturna “Bang bang (My baby shot me down)”, de Nancy
Sinatra, que dá o norte para todo filme, e que comparece na segunda parte
apenas como música incidental.
Na verdade, Kill Bill, visto em
conjunto, é uma grande história de amor. Num primeiro momento, é por amor à sua
filha que Beatrix renuncia à vida de crimes. Depois, é também por amor que Bill
desencadeia sua vingança brutal, exagerada, emotiva. Sentindo-se traído e
enciumado, não suporta a fuga de sua comandada dileta, ao saber-se grávida, não
titubeando em exterminar não só a moça, como a todos que a rodeavam.
Nesse segundo tomo do filme, ainda, acentua-se, maravilhosamente a
inverossimilhança. A história é inverossímil e é boa!!, contrariando um dos
pilares aristotélicos. Será que a teoria do Estagirita já não dá conta da
análise das narrativas do século XXI? Talvez não. Ora, as novelas, mesmo sendo
“realistas”, são insuportáveis pela sua inverossimilhança – esse é o argumento
dos seus críticos. Nesse sentido, o trunfo dos críticos das novelas da TV
torna-se o suplício do analista do filme de Tarantino, pois toda a película não
faz muito sentido (por exemplo, de onde Kiddo tira o dinheiro para suas
viagens?; por que ela não matou de uma vez a personagem caolha de Daryl
Hannah?; como e quando a filha dela foi parida?), mas o que importa? A verossimilhança
parece ser um item que não mais é obrigatório para que se tenha um bom filme,
um bom romance, uma boa narrativa, enfim.
Enfim. É um filme para quem gosta de filmes, como algumas das cenas de Kill Bill Vol. 2 deixam entrever.
Quantas vezes já vimos, em Hitchcock, aquele velho truque em que o ator
somente finge estar dirigindo, com a paisagem passando ao fundo?
Quantas vezes já vimos, na tela grande, depois reprisados nas Sessões da
Tarde e nos Supercines, aquele senhor que habla
español, no fio da navalha entre o encantador e o canalha?
E aquela espetaculosa e improvável saída do túmulo?
E o deliciosamente cruel, até o limite do caricatural, Pai Mei e as suas
técnicas improváveis, inclusive a do Cinco Toques que Explodem o Coração?
O filme é todo exagerado, mas é por isso que gostamos dele; o filme é
todo ambíguo, entre a seriedade e o humor; entre cenas sanguinolentas e cenas
afetuosas entre mãe e filha; entre o amor e o ódio. Uma grande sátira ou uma
não menos grande homenagem?
Ao fim, na fala de Bill sobre o Super-Homem, a chave para se entender (ou
não) tudo: Beatrix Kiddo é como se fosse uma personagem de histórias em
quadrinhos (subvertida, é claro, pois ela é “do mal”). Vista como uma
super-heroína de HQ, Beatrix livra-se do problema da verossimilhança, e pode
trilhar o caminho do absurdo sem problemas. Por isso, também, ela é invencível,
e por isso torcemos por ela, e por isso toda a mitologia em torno dela.
E o filme tem que terminar num happy
end, com Beatrix agora já do lado “do bem”, é claro, pois o encontro com
sua filha inaugura uma fase em que mortes, retalhamentos e espadas de Hatori
Hanzo ficarão para sempre longe. Ou, novamente, não.
Aguardemos Kill Bill Vol. 3,
que um dia será lançado.
[1] Textos
escritos quando do lançamento dos filmes, em 2003 e 2004. Os filmes foram
vistos duas vezes cada, em cinemas de Porto Alegre. O deleite só fez crescer,
na segunda vez.
[2]
José Luís Fornos, em mensagem eletrônica enviada em 10 maio 2004, afirma que
“quanto mais puramente as obras de arte aspiram à ideia manifesta de arte tanto
mais precária se torna a relação das obras de arte ao seu outro, relação que
por seu turno, é exigida no conceito de obra. Mas ela só é conservável à custa
de uma consciência pré-crítica, de uma ingenuidade desesperada. é evidente que
as maiores obras não são as mais puras, mas as que costumam conter um excedente
extra-artístico e, sobretudo, um elemento material intacto, que pesa na sua composição
imanente. O momento histórico é constituído nas obras de arte; as obras
autênticas são as que se entregam sem reservas ao conteúdo material histórico
da sua época e sem pretensão sobre ela.
Nesse sentido, como observa Adorno, onde a arte é experimentada apenas
esteticamente ela deixa de ser experimentada mesmo esteticamente”. (Grifo
em itálico do original).
[3]
Será Tarantino fã dos filmes peckinpahnianos? A cena da matança final em Meu ódio... assemelha-se muito à cena da
carnificina de Kill Bill, seja na
violência, seja na disposição quase suicida dos protagonistas de ambos os
filmes de resolverem os seus problemas “na porrada”, já que há um código de
honra muito particular a ser preservado (código de honra é algo bastante
presente em filme de artes marciais e em bangue-bangues). Sobre os
protagonistas dos dois filmes: destaque para o fato de que os personagens
principais serem “vilões”, e não “mocinhos” de conduta ilibada.
[4] Bobagem.
Tarantino não é conservador. Leiam-se as suas declarações, como presidente do
júri do 57º Festival de Cinema de Cannes, ao dar o grande prêmio a Fahrenheit 9/11, de Michael Moore: “Não
foi o conteúdo político, apesar de estar de acordo com ele, que deu a Palma de
Ouro a Fahrenheit 9/11, filme
anti-Bush que não pode ser apresentado como simples documentário, pois é muito
mais”. Correio do Povo, 24 maio 2004,
p. 20.