sábado, 18 de abril de 2015

Ida e a derrota da narrativa



Daniel Baz dos Santos

Ida é uma história de busca exterior e interior, como muitas que já foram feitas, flertando com o gênero road movie, mesmo que nunca chegue a abraçá-lo totalmente. O que permite, contudo, que o filme se destaque da maré de opções com tramas semelhantes é a precisão do diretor e roteirista Pawel Pawlikowski (do badalado Last resort) nas escolhas temáticas e estilísticas de sua história, o que poderia justificar a vitória na categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar em 2015. O filme conta, em idos da década de 60, a história de Anna. Antes de prestar os votos de castidade para ingressar em um convento, a jovem parte para conhecer a tia Wanda Cruz. Esta revela a origem judia da menina e, após isso, as duas familiares saem em busca da verdade por trás do sumiço dos pais da garota, assassinados pelos nazistas, permitindo que a trajetória pessoal de ambas comente a história recente da Polônia após a Segunda Guerra Mundial. Em paralelo, o convívio com a tia colocará as crenças da menina em xeque, problematizando a dimensão da fé no mundo secularizado pelo qual pretende transitar.




Pawlikowski marca a direção de Ida com algumas constantes. A primeira delas é da ordem do movimento de câmera, ou melhor, da falta dele. À exceção da última cena (interpretada posteriormente) não há nenhuma panorâmica ou travelling em todo o filme. Tudo ocorre dentro do plano fixo, enquanto as personagens se movem (muito pouco, por sinal) no interior do quadro estático. Como a câmera nunca se movimenta, o espaço “dentro do campo” se torna extremamente autoritário, decidindo o que podemos ver ou não, sem oscilações ou alternativas. De qualquer forma, o cineasta aponta para os espaços contíguos ao que é mostrado, já que muitos de seus enquadramentos envolvem ambientes incompletos que sinalizam para seu inacabamento, com especial destaque para as estradas, sem começo nem fim, que ambientam muitos dos pontos da trama.





Além disso, a composição do cenário é extremamente sóbria, com pouquíssimos adereços ou apetrechos, passando por paredes lisas, sem marcas ou rugas, campos vastos sem árvores, e, quando elas existem, estão limpas de folhas. Os lençóis em certo varal são impecavelmente brancos, e só. Quase nada parece revelar as ruínas históricas que contextualizam o filme. Quando as protagonistas interagem com um lugar um pouco mais enfeitado, o salão onde os músicos tocam, é sintomático que Pawlikowski mostre homens colocando as lâmpadas que adornarão o lugar, sinalizando para a artificialidade do gesto. Seguindo este caminho, as roupas da protagonista também estão livres de adereços e a cor do lenço que cobre seus cabelos (representativo de sua submissão ao dogma religioso) rima muitas vezes com o tom de cinza dos fundos da cena. Da mesma forma que o espaço, o rosto de Anna também é austero, já que Agata Trzebuchowska compõe sua personagem com pouquíssimas expressões faciais, sendo cômico o comentário da tia, ao dizer em certo ponto que ela ganha uma cova a mais no rosto quando sorri. Outro ponto preciso da interpretação da atriz e da concepção de sua personagem refere-se à cena na qual ela deixa escapar o riso durante a alimentação das freiras, refeição geralmente silenciosa e rígida, atitude simbólica da transgressão que irá empreender.



As economias presentes em todos os aspectos da obra são coerentes com a ausência de firulas de câmera já mencionada e está em dia também com o roteiro enxuto, sustentado por diálogos diretos, curtos e repletos de pausas, muitas vezes mais significativas do que aquilo que é dito. Entretanto, na rigidez dos cenários se destaca um elemento particular: as escadas. Em um filme que versa sobre a relação entre a matéria das coisas terrenas e a espiritualidade referente aos valores transcendentais, é sintomático que haja degraus em muitos dos ambientes nos quais as personagens transitam, inserindo de forma constante a verticalização do mundo e dos seus valores: na primeira cena, na sala da madre superiora, na casa da tia, fora do quarto do hotel... Esta última, presente após a briga da menina com Wanda, é ainda mais simbólica por tratar-se de um modelo espiralado, portanto, representativo do percurso da personagem.



O jogo entre as questões do espírito e aquelas que concernem ao mundo material é tratado em termos formais também na composição dos enquadramentos. Geralmente, as personagens – Anna, notadamente – são situadas no terço inferior da tela, como se fossem obrigadas a se aproximar das coisas de baixo, contraponto irônico à fé da protagonista, sugerindo o abandono da religião que irá se processar. E é angustiante que o diretor opte pelo superior corporal, na mesma medida em que decide localizá-lo no terreno inferior do campo. Esta decisão se soma com outras também precisas, ilustradas pelo tratamento já da primeira cena, no qual um grupo de freiras põe uma imagem de Cristo em pé, situação focalizada à distância pela câmera que parece não querer se comprometer com a agenda litúrgica. Mais do que isso, quando Anna deixa a instituição, vemos o espaço à distância e opaco pela neblina, em uma decisão fotográfica que sinaliza para a sua fragilidade e esmaecimento. Por fim, a escolha de enquadrar as personagens na camada na parte de baixo do quadro se junta à atitude de recortar o corpo, geralmente, focalizando apenas o rosto dos sujeitos representados (a primeira cena do filme já é construída neste estilo).



A corporalidade é, nesse sentido, um fenômeno parcial em Ida e assim é experimentada. Parece ser a forma que o diretor encontra de não ser unilateral, de não escolher um lado, sugerindo, enfim, que todo projeto do homem é um fenômeno inacabado e parcial, o que enfatiza a fragilidade de sua imagem diante de um cinza que se apodera do chão e do céu. Certas decisões também se situam neste esforço de contrapor o contexto aos dilemas humanos. Talvez as mais significativas sejam aquelas que envolvem Anna entregue aos seus desejos após conhecer o músico. Num primeiro momento, ela o beija e o diretor opta por manter boa parte da tela escura, remetendo aos closes do cinema mudo, quando somente um extrato da imagem é captado pela fotografia. Por fim, quando se relacionam sexualmente, a câmera se mantém estática no rosto da protagonista, indiferente à totalidade do ato sexual, o que atenua, de certa forma, qualquer sentido libertador que a cena poderia ter.
Falando ainda no aspecto fotográfico, resta comentar a escolha de Pawlikowski pelo preto e branco. Por um lado, o mais óbvio, a opção explora a diminuição das emoções (ainda que muitos teóricos já tenham mostrado que a paleta monocromática deste tipo de composição também pode estar carregada de sentimentos), ao tratar com a aparente frieza da monocromia um assunto fundamentalmente emotivo, extraindo daí mais conexão com o tema. Basta pensar na Guernica, de Picasso, também composta no preto e branco, o que permite que cromatizemos a tragédia através da imaginação, já que, em geral, relacionamos os objetos representados com a memória que temos deles em estado empírico. Isso permite que cada um, assim desejando, preencha o quadro com suas próprias cores, em um movimento de empatia e interesse adicional para a dramaticidade do filme. Sendo assim, os dois tons podem reconectar público e sentido, ao contrário do que inicialmente suporíamos.
Contudo, por outro lado, o caso de Ida é ainda mais complexo, pois o preto e branco flerta também com nossa memória histórica a respeito do Holocausto, e, obviamente, com grandes obras que abordaram o tema. Sempre vêm à mente A lista de Schindler, de Steven Spielberg, Noite e neblina, de Resnais, e Maus, de Art Spielgman, ambas responsáveis por utilizar as escalas de cinza para retratar o período. Sendo assim, mais do que coesão e empatia ao abordar o trauma, Pawlikowski está sinalizando para o cânone imaginário que a cultura estabeleceu a respeito da matéria ficcionalizada. Se somarmos isso ao tratamento rigoroso dado aos demais componentes fílmicos, pode-se inferir que tal rigidez e economia sejam também um comentário à dizimação dos poloneses após a guerra (um quinto da população, aproximadamente três milhões de judeus, foi assassinado).
Estamos, portanto, diante de uma obra que expõe e comenta, fingindo que não participa. Aqui está a maior angústia efetivada pelas decisões composicionais do diretor, o repertório de técnicas ocupadas de relatar a história de Anna termina também por se mostrar uma forma parcial de acompanhá-la. Talvez por isso a última cena transgrida a poética instaurada pelo próprio filme, obrigando-nos a acompanhar a heroína decidida, caminhando no meio de uma estrada, vindo na nossa direção, enquanto automóveis seguem o percurso oposto, captada pela câmera finalmente liberta, solta em um travelling que significa, em um mesmo gesto existencialista, o fracasso da completude e o sucesso da abertura, ou a derrota da narrativa enfatizando o sucesso do que foi narrado.