Em Relatos selvagens (Relatos
salvajes), vê-se mais uma vez a qualidade técnica e estética que o cinema
argentino alcançou. Há pelo menos quinze anos fala-se de um “Novo Cinema
Argentino”, que tem na figura onipresente de Ricardo Darín a sua pedra de
toque. Até um Oscar os hermanos ganharam
nesse período, com O segredo dos seus
olhos em 2010 (Darín é o ator principal, óbvio!), para a inveja do Brasil, obcecado
pelo prêmio da Academia. Nosso país, aliás, é dono de uma filmografia
respeitável, com atores e diretores de alto nível, mas parece ainda se
ressentir da dualidade, por vezes redutora, do cinema político-ideológico, de
cunho exaustivamente denunciatório e social versus
o cinema culinário das comédias sem graça que assolam as salas de cinema, em
geral películas produzidas pela Globo Filmes e/ou tendo os atores da emissora
como protagonistas. Da Argentina, por outro lado, parece emanar um frescor
temático que alcança a subjetividade de cunho filosófico-existencial que faz
todo o grande Cinema (você sabe o que estou falando – Fellini, Scola, Kubrick, Lynch,
Allen etc.), não o simulacro que inunda os shoppings
toda a semana. Dito isso, queria fazer uns comentários sobre os seis relatos
selvagens apresentados por Damián Szifrón.
Nesse conjunto sêxtuplo de histórias,
observa-se que não há nenhuma relação aparente entre os personagens, mas a unidade
temática do filme é garantida pela recorrência, nos enredos, por assuntos que
giram em torno da vingança, da ira, do desajuste. Essa unidade temática é que garante
que o filme não tenha os altos e baixos tão comuns nos filmes de episódios – a
película é excitante e mantém uma espantosa regularidade, muito também devido à
atuação dos atores, ao roteiro burilado e à direção segura. É também de se
destacar que em nenhum dos episódios aparecem armas, que muitas vezes
simplificariam e banalizariam o enredo, levando em conta o tipo de história
desenvolvida. Se o filme fosse norte-americano, a presença de revólveres seria
uma constância, dentro do culto às armas de fogo que os Estados Unidos
empreendem mundo afora.
Na verdade, pode-se dizer que
talvez seja a vingança o principal componente do cardápio, já que ela está
presente em todos os seis segmentos: 1) “Pasternak” (avião); 2) “As ratazanas”
(restaurante); 3) “O mais forte” (estrada); 4) “Bombita” (engenheiro); 5) “A
proposta” (caseiro) (neste, a vingança está atenuada, embora se concretize ao
final); e 6) “Até que a morte nos separe” (casamento). Sentimento universal e
atemporal, a vingança caracteriza-se pela gana do ser humano de cobrar com
juros humilhações sofridas por si ou por alguém próximo, sendo expressa
constantemente na literatura e no cinema. Seja dito de passagem: quando penso
em vingança, sempre me vem à mente “O barril de Amontillado”, de Edgar Allan
Poe, que retrata um plano vingativo planejado cerebralmente e executado com
precisão e perícia, pois que nunca será descoberto; neste sentido, o conto de
Poe é a antítese das pequenas histórias da produção argentina, em que pouco é
planejado com antecedência (exceção são os episódios “Pasternak” e “Bombita”),
pois os instintos afloram sem quase nenhuma mediação intelectual.
Nos episódios supracitados,
nota-se também a força da máquina, como no avião do episódio 1, e nos carros
presentes em 3, 4 e 5; em especial nesses três últimos episódios, o automóvel constitui-se
como personagem, que determina destinos, mapeia desilusões e serve de válvula
de escape de uma vida robotizada e limitada. Um dos itens essenciais da sociedade
de consumo, o uso do carro no filme descortina aspectos negativos dos veículos
automotores: poluente, agressivo e antissocial, ocupa o espaço do humano nas
cidades, sufocando, agredindo e matando, tornando a indiferença a regra geral.
Se o carro é um elemento
importante para a compreensão do filme, o sexto e último episódio desmascara e
ridiculariza outra instituição-símbolo da burguesia: o casamento, demonstração ritualizada
de poder e riqueza das classes média e alta. A cerimônia de casamento como a alegoria
da dissolução do mundo das aparências burguesas já foi tratado no cinema por
Bergman, Altman e Vinterberg, por exemplo, mas aqui surge com rara e renovada maestria.
A escalada vertiginosa de descobertas, xingamentos e humilhações entre noivo e
noiva leva a uma redenção catártica, em meio a esperma, sangue, suor e
lágrimas. É, na minha opinião, o melhor episódio do filme, juntamente com o
inacreditável episódio 3, em que os dois homens protagonistas ficam reduzidos à
lei do mais forte. Isolados geograficamente, perdidos em uma estrada deserta, a
situação metaforiza a ausência de civilização e carinho da sociedade atual,
pois os atos dos dois motoristas sucessivamente recendem preconceito, rancor e
raiva. Nesse episódio, verdadeira montanha-russa de emoções e agressões, não há
como não lembrar o espírito de certas séries animadas clássicas, como Tom e Jerry
e Papa-Léguas.
Aliás, as convenções burguesas, uma
a uma, são atacadas no filme: no episódio 1, bullying e relações familiares, profissionais e afetivas se
entrecruzam de forma ao mesmo tempo risível e desastrada; no 2, o representante
indigesto da mistura de política e agiotagem termina da pior maneira possível;
no 4, “Bombita” tem o seu “dia de fúria” (sim, a referência aqui é o filme
homônimo de 1993 dirigido por Joel Schumacher e protagonizado por Michael
Douglas), contra a burocracia inepta que quer controlar o cidadão, que quanto
mais pacificado e humilhado melhor; ou no 5, em que nenhum dos estratos da
sociedade demonstra possuir resquícios de pudor – patrões, empregados,
profissionais liberais (advogados) e funcionários públicos (delegados)
igualam-se, todos, na impunidade, na falta de moralidade e no desejo de
enriquecimento rápido e fácil.
No clássico álbum em quadrinhos O homem é bom? (Porto Alegre: L&PM,
1984), a pergunta do título tem uma resposta límpida e cristalina, ao longo de
suas histórias: não, o homem não é bom, e o autor Moebius brinca com o sentido
duplo da palavra – se o caráter do homem é ruim, também o gosto da carne humana
não é aprazível ao paladar. Em Relatos
selvagens, a resposta, a cada momento, também vai se delineando no mesmo
sentido daquele engendrado pelo desenhista francês: o homem não é bom, pois
rompe o delicado e antinatural “contrato social” a todo momento, movido pela
angústia, pela falta de ética, pela morbidez, pela violência. Inverossímil por
vezes (sem estragar a fluência da obra) na sua tragicomicidade, o filme faz com
que em meio às cenas mais selvagens o riso saia incrédulo. A catarse, que vai
se moldando ao longo de todo filme, atinge o seu auge no último episódio, com a
grande cena final, que não pode ser contada para não estragar o prazer da
recepção, para aquele que ainda não viu a película.
Ao fim, restamos completamente
exauridos da violência que se apresenta em todo o filme, estupefatos com o fato
de sermos da mesma raça das figuras ficcionais que desfilam na tela – “sim, eu
poderia ter feito aquilo”, é um pensamento que vem à mente. Por enquanto não
fomos nós, e a função higienizadora da arte vem à tona, mas na próxima esquina quem
sabe eu ou você não caiamos na mais pura selvageria com alguém que cruze o
nosso caminho. Será que o sucesso de público do filme não pode ser em parte
explicado pelo fato de ele desnudar o desejo do ser humano de, em certos
momentos, se livrar completamente das amarras morais, físicas, comportamentais,
para, livre finalmente do superego, tornar-se mais insuportável e mesquinho do
que já é? Chegando então a essa situação, o único caminho é a
autodestruição, fim talvez inexorável da raça humana.
E é sobre isso que Relatos selvagens nos dá notícia.