Daniel Baz dos Santos
Tirando o óbvio do
caminho, Os sete samurais, filme
lançado em 1954, é uma obra-prima do cinema mundial. Trata-se, provavelmente,
do melhor filme de seu realizador, o diretor japonês Akira Kurosawa, cuja
carreira é marcada por projetos geniais como Rashomon, Madadayo, Ran, Viver,
entre muitos outros. Conforme já apontou Donald Richie, a obra se segue à
proposta de Mizoguchi em Contos da lua
vaga, preocupada em desbravar momentos históricos do passado japonês, mas
retratando os seres com dimensão psicológica contemporânea, abrindo caminho
para outros grandes filmes posteriores, dos quais se destaca Harakiri, de Kobayashi.
Os
sete samurais se passa no período histórico que ficou
conhecido pelas “províncias em guerra” pelo poder (1490-1600). É o
momento que antecede a era Edo (1603-1868), na qual o Japão gozou de um extenso
momento de paz sob o reinado dos Tokugawa. Kurosawa filmaria quatro histórias
passadas neste mesmo período. Trono
manchado de sangue (1957), A
fortaleza escondida (1958), Kagemusha,
a sombra do samurai (1980) e Ran
(1985). Além do caráter histórico, o filme apresentava um dos pontos
culminantes da apropriação feita pelo diretor da
cultura ocidental, ficando patente, mais uma vez, sua admiração pelo cinema norte-americano,
com particular predileção pelo gênero Western.
A mistura dará uma nova cara aos Jidai
geki, filmes históricos japoneses, associados à tradição do Chambara, que,
tanto no cinema quanto no Kabuki, ocupavam-se de enredos em torno de duelos de
espadas.
O conflito de Os sete samurais se inicia quando os
habitantes de uma pequena aldeia de agricultores se tornam reféns de um bando de
40 saqueadores. Para não acabar completamente com a produção local, o líder dos
pilhadores decide poupar provisoriamente o lugarejo para poder aproveitar
melhor a colheita da cevada em alguns meses. Após ouvir a conversa dos
malfeitores, um grupo de moradores da localidade procura o sábio ancião do
povoado em busca de conselhos e ouvem da velha figura um plano ousado:
contratar samurais para proteger o lugar dos saques.
Sendo assim, a trama do
filme aposta no complexo jogo entre classes e posições de poder, estabelecendo relações
dinâmicas entre os muitos estratos da sociedade japonesa do período, tópico
recorrentemente explorado pelas escolhas de Kurosawa. A começar pela cena que
abre Os sete samurais. Coincidentemente
ou não, temos sete rápidos cortes de câmera onde acompanhamos os bandidos enquanto se posicionam em um alto monte para observar, de cima, o vilarejo. Portanto, a primeira visão que temos da aldeia é mediada pela longa distância de um
plano abertíssimo, responsável por nos colocar na perspectiva dos bandidos.
Por esta via, duas
medidas humanas são postas em contraste, ou seja, a dos vilões, naturalizada
pela câmera, e a dos camponeses, apequenada e longínqua. Nesse sentido, aquela
“ambiência moral relativamente negativa” e “pessimista”, que Marcel Martin
afirma ser a primeira dimensão psicológica deste tipo de enquadramento
afastadíssimo, assume uma posição precisa sobre o cabo de forças entre os dois
grupos e situa a impotência de uns como recorrência (e consequência) do domínio
dos outros. Essa dualidade será representada por todo o filme em vários de seus
níveis.
Os cortes posteriores se
aproximam cada vez mais dos habitantes da aldeia e só aumentam a força do
primeiro grande plano picado e a tensão mental que ele proporciona, ao colocar
os assuntos daqueles que irão nos interessar no nível do chão. Dessa forma, age
na narrativa visual um determinismo que tem como fundo a importância desse
mesmo solo no papel desempenhado pelos contratantes ao longo do filme.
De fato, o jogo entre o
real valor das coisas e a importância atribuída pela câmera a elas é usado também para
demonstrar o peso da comida e de sua influência nas trocas entre os seres. Os
aldeões estão famintos, comendo apenas painço para conseguir pagar os samurais
com arroz. Por causa disso, em alguns momentos, o alimento surge agigantado,
ganhando uma importância que percebemos artificialmente aumentada e fruto das contradições
exploradas pelo enredo. É digna de nota a cena na qual vemos Kambei Shimada
oferecendo uma tigela de arroz aos aldeões quando descobre que eles estão mal alimentados. Se, num primeiro momento, somos enfeitiçados pela proporção aberrante da refeição, seguindo os
parâmetros hermenêuticos vistos até aqui, uma segunda olhada demonstra algo
muito mais complexo.
Trata-se da alteração
que a comida promove na dimensão das figuras humanas, visto que a mão que a oferece
é imensa, afirmativa e confiante, entrando em conflito com a imagem dos três
camponeses minorados e acossados dentro do quadro. Estamos diante de um plano
concebido de forma ambígua, pois é “detalhe” e “médio” ao mesmo tempo. Em
outras palavras, na mesma medida em que ele ambienta, hierarquiza. Sua
composição, ao tentar articular dois tamanhos distintos e ter em seu centro o
precioso manjar, é uma das tantas formas iconográficas empregadas por Kurosawa
para dar vazão ao sentido das relações entre os diversos nichos do filme. Além disso sua dualidade e o jogo entre as proporções dos itens em cena e rima com a cena inicial já analisada..
Provavelmente, as distintas
naturezas dos personagens que se movimentam em tela e a proveniência particular
de cada um deles, levou Kurosawa a repensar a maneira como vinha captando as
imagens em seus filmes anteriores. Talvez por isso Os sete samurais seja o primeiro trabalho que Kurosawa tenha
filmado com três câmeras. Decisão que será fundamental no projeto estético do
diretor, posto que, gradualmente, desembocará em Céu e inferno (outra fábula sobre a relação entre os desvalidos e
os abastados), no qual o cineasta usará
nove câmeras para rodar uma única sequência: a incrível cena do trem.
Ainda relacionado ao
imaginário da colheita e seus sememas visuais, o moinho surge em algumas
passagens como representação efetiva do mundo cíclico do qual os aldeões estão
ainda à mercê. Seu mecanismo ruidoso será a trilha sonora de uma das cenas
iniciais do filme, quando os camponeses decidem o que irão fazer em relação aos
saqueadores. É por isso que a região na qual ele se posiciona será a primeira a
ser abandonada quando o combate se inicia, libertando os moradores da
reiterativa vida de submissão na qual vinham inseridos (é sintomático também que este seja o espaço onde transita o ancião da aldeia).
Com efeito, a segunda
parte do filme, após o intervalo, demonstra como esse ambiente, cuja
funcionalidade está vinculada à produção agrária, será completamente alterado
depois que os samurais traçam o plano de defesa. Casas serão evacuadas. Onde
havia uma plantação será criado um charco. Famílias perdem sua disposição
natural e organizam-se em esquadrões, seguram lanças e riem, de uma maneira
impensável para quem acompanhou o início da obra. Toda a disposição inicial, e
natural, do povoado é alterada. Esse esforço para lutar pela própria
produção e as drásticas mudanças no cenário, que ocupam longos minutos da
projeção, simbolizam a superação de uma fenda, cuja base é a desigualdade entre
os despossuídos e os aprovisionados.
Toda a primeira parte
do filme, que narra a procura dos guerreiros dispostos a lutar pelos aldeões, é
coerente com isso. Basta notar como o líder dos samurais, o experiente Kambei
Shimada, deve se disfarçar de monge para impedir um assassinato. Essa mudança
de status também atinge Heihachi Hayashida, que é encontrado trabalhando como
lenhador para um simpático senhor mais afortunado do que ele. Da mesma forma, o
personagem de Isao Kimura, jovem samurai rico, decide lutar por meros punhados
de arroz e, inclusive, dá aos aldeões o dinheiro que eles precisam para
recuperar o produto após este ter sido roubado. Deleuze, que não
abordou estas contradições, via nos samurais justamente estas sombras sem lugar
social definido, sujeitos sem serventia que não parecem saber exatamente o que são e que, estando "fora de lugar", ajudam a representar o universo de territórios limite, desfocados e plurívocos do filme.
Assim como Kambei
Shimada, as mulheres da aldeia também cortam o cabelo, mas para se fingirem de
homens, visto que os agricultores temem violações por parte dos mercenários, o que
revela um outro conflito, menos explorado pela obra, e que se processa no campo
dos desequilíbrios de gênero. Outra cena que atua nesse mesmo complexo discursivo
é aquela na qual a esposa de Rikishi, um dos contratantes, prefere morrer
incendiada a voltar para o vilarejo. A dualidade do caráter da mulher (e da sequência como um todo) é brilhantemente exposta por Kurosawa já que
ouvimos, ao mesmo tempo, o som das chamas consumindo o estabelecimento e o
rumor do riacho utilizado para descobrir o esconderijo. Sendo assim, há no
universo retratado por Kurosawa um número considerável de mudanças abruptas de
status e de disfarces de toda sorte e é nesse contexto de simulações que o
filme arranja seus personagens na comunidade. Essa, por sua vez, nunca é esquecida, já que diretor faz questão de focalizar as grandes massas em todos os pontos do
filme, como que para não nos deixar esquecer do propósito geral de sua fábula.
Somente dentro deste conjunto de forças,
podemos interpretar apropriadamente uma das melhores cenas de Os sete samurais, atestado
do talento de Toshiro Mifune e da precisão com que compõe seu simpático papel.
O grande ator japonês vive seu personagem Kikuchiyo com um vigor impressionante. Sabemos ao longo do filme que ele anda com uma
árvore genealógica falsa, assumindo o nome de um indivíduo que deveria ter
treze anos de idade. Sua origem enigmática se soma à sua espontaneidade, já que
o ator empresta traços animalescos à sua figura, o que a torna imprevisível.
Vemos Kikuchiyo por
trás de grades, como um animal acuado. Ele rosna, cospe, mostra os dentes,
atira areia com os pés quando se enerva. Em dado momento, chega a ser afugentado
com pedras por um de seus companheiros. Tudo isso prepara a cena na qual o
inconstante espadachim tenta convencer os outros seis guerreiros a usarem, no
combate final, armas e armaduras encontradas na aldeia. Os demais, percebendo
que os camponeses mataram samurais feridos ou perdidos para montarem o arsenal, se recusam a utilizar os acessórios, ofendendo os agricultores de assassinos. A
resposta é o grande monólogo do personagem de Mifune, que assevera que a
condição dos campônios foi criada pelos próprios samurais e, em último caso,
pelo contexto da guerra e da divisão da sociedade em classes. Todos percebem
neste ponto que o espadachim vivido por Mifune é, de fato, um filho de
camponês, condenado a vagar depois de algum saque.
A cena é brilhante, no
entanto, porque o ator desenvolve o longo solilóquio inteiramente vestido com a
armadura de um samurai abatido. Esta é a coroação maior da mobilidade promovida
pelo filme, e da necessidade de se assumir certos papéis para que o discurso
ganhe força. Na contramão do Papa na peça Galileu
Galilei, de Bertolt Brecht, que incorpora o discurso dominador, quando traja
suas vestes eclesiásticas, assumindo a ideologia do opressor, o samurai pode
finalmente entender o seu lugar no mundo. Pode-se dizer também que a
indumentária comporta um excesso de visão sobre a personagem que necessita se
disfarçar do “outro” para ampliar sua perspectiva a respeito da organização do
mundo.
Além do espaço da
aldeia, o filme também explora o entre-lugar em que o jovem Katsushiro Okamoto conhece
a filha do aldeão por quem se apaixonará. Para representar o amor impossível,
Kurosawa os situa em território descontextualizado, um dos grandes ambientes
oníricos espalhados por seus filmes, que não remete nem à guerra, nem à colheita.
Aqui se situa não somente o choque da cultura samurai com a camponesa, como
também o primeiro contato entre os heróis e o bando inimigo. Nesse ambiente, devido à
sua natureza híbrida e multifacetada, repleta de incongruências e contatos
inesperados, os indivíduos têm de andar escondidos, frequentemente ocupados em
atividades transgressivas, seja emboscando um oponente, seja esperando um
amante.
Todo esse universo de
valores opostos que colidem preestabelecem o sentido da luta final entre
saqueadores, samurais e aldeões. Quando os bandidos finalmente atacassem a
aldeia sob forte chuva, Kurosawa sabia que seria impossível antecipar exatamente
o que aconteceria diante das câmeras. Além disso, a ação não poderia ser
interrompida nem recomeçada, pois isso acarretaria num aumento considerável nos
custos da produção. O diretor posiciona as suas três câmeras com precisão
invejável e capta uma das maiores cenas de ação da história do cinema.
Provavelmente por razões também técnicas, temos pouquíssimos closes ou planos
mais fechados no momento do ataque e isso causa um efeito poderoso na tela. A
partir dos enquadramentos mais distantes, nunca perdemos de vista o cenário no
qual os guerreiros transitam. Todos os golpes, investidas, disparos de flecha
estão indissociavelmente ligados ao espaço onde eles são executados e fluem com
naturalidade de uma parte do terreno para outra, principalmente nas várias
tomadas em que acompanhamos os cavaleiros entrando na aldeia, sendo emboscados
e tentando sair do outro lado.
Esse vai e vem
incessante, que marca toda a sequência, é o movimento preciso encontrado pelo
diretor para revelar os conflitos sociais explorados pelo filme em seu clímax.
As panorâmicas horizontais são, mais uma vez, ambíguas, ou seja, funcionam para
acompanhamento e ambientação. Os movimentos laterais obsessivos, raramente
antepostos a outros verticais, apontam para uma maior adequação da atividade da
câmera às propriedades signícas do cenário, como notou G. Buttafava a respeito
do cinema novo dos anos 60, o que marca mais um pioneirismo de Kurosawa.
São, portanto, simultaneamente
descritivos e dramáticos, adquirindo uma função coreográfica que não é
meramente técnica, mas também estabelecendo um caminho para o sentimento
profundo das tensões em jogo. Além disso, o uso da panorâmica torna-se ainda
mais dual, pois, ao alterar completamente os itens iniciais sendo expostos pelo
quadro, movendo-se lateralmente, a câmera substitui parte do trabalho da edição,
montando relações entre dois lugares do espaço, tanto sensoriais quanto
intelectuais, sem utilizar cortes entre eles (o que desconjuntaria a natureza
coletiva e geograficamente precisa do drama).
Nesse sentido, esses
ritmos reiterativos, quase circulares, em que a câmera e os personagens avançam
e recuam, conotam, de forma complementar, a dimensão daquilo que é evanescente
e provisório, visto que, não fossem as cenas anteriores em que vemos um mapa da
aldeia, perderíamos toda referência espacial e a imediata função simbólica
dupla de uma câmera exasperada, cheia de fôlego e ávida por não perder as
formas e os volumes diante de si. Essa conturbação, obviamente, está a serviço
também do duelo entre duas visões de mundo, que são plasmadas pelas mudanças
repentinas de trajetória que cadenciam a batalha. Toda a “progressão” de nosso
ponto de vista, aponta para a impossibilidade de conjugar o fora e o dentro, o
aqui e o lá, o ataque e a defesa.
Para entender o domínio
preciso da posição de câmera nos filmes de Kurosawa basta lembramos da cena na
qual um dos aldeões surpreende a filha com Katsushiro Okamoto. A câmera narra
os acontecimentos do ponto de vista de fora da casa, assumindo assim a
perspectiva da fuga da protagonista, tomando, obviamente, seu partido, ao mesmo
tempo em que critica a brutalidade do pai. São esses mesmos dispositivos
narrativos em que a câmera não apenas registra, mas propõe o mundo, que fazem
de Kurosawa um gênio da sétima arte. Além disso, se a história do cinema é a
história da libertação da câmera, como disse Alexandre Astruc, Os sete samurais deve ser posto ao lado
de Cabíria, Intolerância e outros bastiões desse percurso.
A última imagem do
filme mostra os túmulos inertes dos samurais. Depois do festival de movimentos
e música executado durante o renhido combate, parece que o resultado é a
paralisia total, reflexiva por um lado e contemplativa por outro. Contudo,
alguns aldeões atravessam o campo em alta velocidade, síntese dialética entre
movimento e estase, ação e impotência. A cena é ambivalente e complexa como a maneira pela qual Kurosawa via o mundo e revelava, em uma das mais poderosas histórias do século XX, as contradições de uma sociedade vítima de opressão.