Mauro Nicola Póvoas
Este
texto vai para o Zé.
Juremir
Machado da Silva, no Correio do Povo
de 9 ago. 2015 (domingo, p. 2), na crônica “Allen e Godard”, diz que este
último, “papa da chamada Nouvelle Vague, continua a fazer filmes para si mesmo
e para alguns fiéis. Ele sempre quis fazer pensar. Sempre vejo. E durmo. Mas
não deixo de ver. É uma experiência antropológica”. Interessante constatar que
a ironia de Juremir joga com o fato de a suposta falta de linearidade dos
últimos filmes de Jean-Luc Godard ser um soporífero potente aos espectadores
incautos. No dia 12 ago. 2015 (quarta-feira, p. 2), Juremir volta rapidamente ao
assunto, para decretar: “Hoje, só três nomes ainda me fazem sair de casa: Woody
Allen, Quentin Tarantino e Jean-Luc Godard. (...) Detesto ver sempre o mesmo
velho filme de Godard”. De novo, no fio da navalha entre o elogio e a crítica,
o cronista deixa ambígua a sua posição sobre a obra do cineasta, acostumado,
aliás, ao “ame-o ou deixe-o”. Não parece, realmente, ser possível a mediania em
torno de Godard.
Estes
dois textos de Juremir, somado ao fato de eu ter visto recentemente um filme de
Godard, fizeram com que eu pensasse um pouco sobre a minha relação com o
diretor francês, para alguns gênio, para outros louco e para uns simplesmente
um chato.
(Não
tenho muita paciência de baixar filmes para vê-los em um notebook ou tablet. Acho,
quixotescamente, que filmes precisam ser vistos pelo menos numa tela de mais de
20 polegadas. Na verdade, para mim, filme é para ser visto na telona, com gente
respirando ao lado e rindo e incomodando e comendo pipoca e resfolegando e
fungando. Senão não é cinema. Podem dar o nome que quiserem, mas ver filmes na
mesma sala em que se come & dorme & se vê o Silvio Santos & se joga
videogame (enfim, onde se vive) é outra coisa. Sendo assim, prefiro não ver um
filme, qualquer filme, se as condições de pressão, temperatura e legendas não
forem as mínimas, restando-me somente ficar na ignorância e não ver a maior
parte da produção fílmica atual.)
Feito
o pequeno circunlóquio, volto a Godard: o que assisti dele, vi no cinema. Ver
um filme no cinema, experiência epifânica, sociológica e profundamente humana.
Um
dia, acho que lá por 1997, passou Para
sempre Mozart (1996) na Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). Confesso que
o filme me causou certo embaraço e confusão, mas gostei, afinal qualquer alusão
a Mozart sempre me agrada (alô, Rudinei!). Era o primeiro Godard que via, com
sua narrativa descosida, e na saída, ainda meio tonto, encontrei Zé Luís,
porto-alegrense que era meu colega no Mestrado em Teoria da Literatura na
PUCRS. Ele era da “casa” (isto é, de Porto Alegre), estava pois, eu achava, acostumado
a ver filmes do Godard no cinema, não um interiorano como eu que pegava no
cinema só a rapa do tacho, alguma coisa pelo videocassete e muuuuita coisa pela
TV (quantas vezes fiquei acordado para ver a Sessão Coruja?). Rapidamente
troquei palavras com ele na saída. A partir daí, tenho no Zé um amigo, com o
qual há sempre assunto para a conversa, desinteressada ou interessada. Um cara
que vai ver Godard no cinema, bom sujeito é. Ele deve ter pensado o mesmo de
mim, tanto que até hoje a amizade continua. Graças a Godard? Talvez.
Uma
outra vez, acho que lá por 1998-1999, vi o anúncio de um festival de Godard na
CCMQ. Era época de muito estudo e pesquisa, dissertação para terminar,
trabalhos, disciplinas, sempre alguma coisa pendente. O mundo acadêmico, doce
por um lado, terrível por outro. Mas pensei: é um festival do Godard! Quando
que vou poder ver filmes dele assim, de novo? Lembremos que era uma época
pré-Internet, que baixar filmes e You Tube eram coisas de um tempo muito distante,
talvez para meus netos.
Bom,
aí, nesse festival, consegui ver:
O desprezo
(1963) – Brigitte Bardot no auge. Godard e as suas belas atrizes... Gostei
muito, até porque filmes metalinguísticos que abordam o mundo do cinema sempre
me conquistam. Na verdade, depois pude constatar, O desprezo era uma narrativa até bem “normal”, levando em conta os
padrões godardianos.
Alphaville (1965)
– filme de detetive misturado com ficção científica. Estranho.
A chinesa
(1967) – adorei esse filme, embora a confusão estabelecida na minha cabeça. Em
tempos de FHC, pré-Lula, em que talvez ainda fizessem sentido reuniões para
discutir Mao, o filme causou um nó na minha cabeça esquerdista (hoje, ela ainda
é), com a presença certeira da ironia do diretor, sempre desconstruindo aquilo
que a princípio consideramos indiscutível.
Me
lembro que nessa fase minha alma e meu coração estavam quase todos encharcados
nas lides acadêmicas, então talvez não tenha aproveitado esses três títulos como
poderia ou deveria. Queria rever todos, e mais outros, na telona.
Depois,
num ano que não sei mais precisar, li que a Sala Redenção da UFRGS passaria Acossado (1960) num dia qualquer, dento
de alguma mostra. Bah, o primeiro longa do enfant
terrible, com Seberg e Belmondo. Tinha que ver isso. Arrumei minha vida de
estudante de pós-graduação e lá me fui. A cópia era ruim, mas a película, com
seus chiados e riscos, marcou fundo, com as inovações da gramática
cinematográfica que o diretor trazia à época, com a atitude de desbunde proposta
pelas personagens, as quais circulavam pela atmosfera libertária parisiense da
década de 1960.
Passaram-se
muitos anos, 2009, talvez; eu estava em Lisboa para um evento e tinha duas tardes
livres. Passei pela Cinemateca Portuguesa, para ver a programação, pois sempre
havia coisa boa na casa de cinema lisboeta. Qual a minha surpresa: amanhã passava
O demônio das onze horas (1965), a
tradução brasileira maluca para Pierrot
le fou, com, de novo, Jean-Paul Belmondo. Fui com certa ansiedade ver o
filme. Uma quinta, ou terça-feira, não lembro, às 15h, quem estaria presente
para ver Pedro, o louco (título
português)? Será que só eu pagaria ingresso para ver mais um Godard da minha
vida? Para minha secreta alegria, o cinema estava cheio, repleto de
portugueses, ou não, sequiosos para ver o filme – o discreto charme da telona,
esse obscuro objeto de desejo. Assim, para sempre, e intimamente, respeito o
público de cinema português. Podem me perguntar sobre o filme, que responderei
que pouco lembro dele, mas na hora, no momento, adorei, talvez seja aquele que
mais gostei do diretor. Coisas da recepção cinematográfica, coisas de se ver um
filme com sala cheia, ainda mais numa cinemateca.
Agosto
de 2015. Godard estava distante de minha vida, talvez nem me lembrasse dele. Primeiro
filho, diversas atividades acadêmicas, sempre tanta coisa para fazer, sempre na
correria. Estávamos no Shopping Pelotas para comprar qualquer coisa, depois
almoçar. “Deixa eu pegar o folheto com a programação”. Acostumado com o trash hollywoodiano de sempre, quase não
acreditei quando vi num canto da folha: “Adeus
à linguagem 3D. Legendado. Todos os dias. Sala 4”, com a seguinte sinopse:
“Um homem e uma mulher vivem um relacionamento marcado pela falta de
comunicação, já que cada um fala uma língua diferente. Então, o cachorro deles
decide intervir”. Fiquei pasmo, não com o deliciosamente tosco, incorreto e
inverossímil resumo acima transcrito, mas com o fato de estar passando o filme
3D do Godard ali. Pedi à Marina, pois achava que o filme só ficaria uma semana
em cartaz: “Liga para a tua aluna que fica de babá do Ramiro nos fins de semana
e vê se ela pode hoje, pois aí já compro os ingressos agora mesmo” (o filme era
de noite). Sim, a Melissa podia, e fui comprar as entradas. A moça da
bilheteria, quando falei que queria dois tíquetes para o Adeus à linguagem, me comentou que, a pedido da direção do cinema, tinha
que avisar que o filme era “independente”, ou seja, o som e a imagem
apresentavam uma qualidade abaixo do que se esperava. Ri interiormente com o
aviso, pensando se a moça conhecia Godard; se não conhecia, não era culpa dela,
afinal, quem conhece Godard?
Agora,
aquilo para o qual ela alertou é exatamente o grande ganho do filme, irritante
na sua distorção de som e imagem. As cenas, em 2D e 3D, vão se acumulando e se
atravancando no mesmo espaço, e o espectador vai ficando impaciente e
incomodado, não sabendo se é culpa da projeção, da cópia, dos malditos óculos
3D. Não sei se é porque já uso óculos no dia a dia, mas não gosto de filmes 3D,
pois aí se fica com seis olhos! O 3D não acrescentou ainda quase nada à arte
cinematográfica, a não ser a histeria por parte dos diretores em jogar coisas
em nossa direção – a exceção à regra é Pina,
de Wim Wenders. Gravidade, As aventuras de Pi e A invenção de Hugo Cabret sobreviveriam muito bem
sem o 3D a eles impingido, embora existam nesses filmes algumas soluções
interessantes e belas imagens a partir do uso da tridimensionalidade.
Adeus à linguagem
(2014) inova ao investir em ser assumidamente um antifilme, que causa
estranhamento e desconforto ao espectador, ao fazer do 3D elemento disfórico e
distópico, e não a salvação anunciada de uma arte, a sétima, ameaçada pela
pirataria e pela insegurança das ruas. O seu roteiro às avessas ajuda a mostrar
a incongruência de se contar histórias num mundo cada vez mais violento e sem
espaço para o diálogo. A projeção desfocada dá adeus à linguagem
cinematográfica, ou melhor, a todas as linguagens que poderiam contar as histórias
ainda passíveis de serem narradas, pois já não há mais línguas, símbolos,
escritas para tanto, até porque o nível de incomunicabilidade das pessoas,
alerta o filme no limite, levará a humanidade à imobilidade e à passividade. O
cachorro da ficção (na verdade, o cão de estimação de Godard), como a Baleia em
Vidas secas, parece o ser vivo mais
atento a tudo à sua volta.
Que
me recorde, ninguém saiu do cinema pelo meio, e nem havia tão pouca gente assim
na sala, isso já é um ganho num filme tão fora do “esquema”. Deveriam ser aqueles
fiéis citados por Juremir, eu incluído. E há mais alguns por aí, pois o filme ficou
mais uma inacreditável semana em cartaz, em meio a Pixels e Missões impossíveis.
Do que será a “culpa” por tanto “sucesso”? Do 3D, com seu apelo comercial, que
na verdade é uma jogada do mestre francês, uma verdadeira “pegadinha” para cima
dos desavisados; da temática que envolve cachorro, sempre um animal com um chamativo
forte junto ao público; do chamariz da nudez; do fato de ser um filme pequeno
(1h10), sem perigo de cansar, portanto?
Bons
tempos, em que se precisava sair para a rua para ter acesso a determinadas
aspectos culturais. Espera aí, será que são bons tempos, ou maus tempos? Hoje
tem-se tudo a um clique no mouse ou a
um toque na tela. Para mim, isso é muito bom, isso é muito ruim.
Hoje
já não moro mais em Porto Alegre, será que lá ainda passa Godard em festivais
que duravam duas ou três semanas? E na velha capital portuguesa, as tardes
ensolaradas são preenchidas por aposentados e estudantes assistindo a um Godard
do século passado?